(*) Nelson Valente

O sol caía a pino sobre a cidade de Novo-Horizonte/SP.

O ano vinha-se caracterizando por tremenda estiagem que assolava a cidade e, em consequência das grandes queimadas que calcinavam vastas áreas de matas derrubadas para o plantio do café, espessos rolos de fumaça elevavam-se para o céu, como enormes colunas movediças erguidas para o infinito.

O crepitar das labaredas destruidoras fazia-se ouvir ao longe como o gargalhar do ígneo elemento em sua faina irresistível e devastadora.

O sol, impotente para atravessar com seus raios a espessa onda de fumaça que se estendia pela vastidão do espaço, desenhava no céu cinzento e opaco o seu disco rubro, porém, sem o brilho característico.

Durante o dia, sob a profunda camada de névoa seca que a recobria por toda a parte, Novo-Horizonte parecia dormitar, imersa na sonolência das coisas esquecidas.

O suor deslizava pela face, gotejando pelo rosto sombrio, pálido e envelhecido, um pouco rubro. As rugas acentuadas demarcavam o sofrido rosto do velho visitante em meus pensamentos.

O estranho visitante acomodou-se como quis na ampla e confortável poltrona. Esticou as longas e magras pernas sobre a cadeira que lhe estava em frente, num autêntico espreguiçamento que lhe fez estalar as juntas entorpecidas pela postura anterior.

Em seguida tornou a fitar-me atentamente, com aqueles olhos profundos e perscrutadores, esvurmando os pensamentos mais ocultos e secretos.

Sua voz, grave e soturna, fez-se ouvir:

– Veja, meu amigo, o homem vive matando! – franziu a testa,ficou olhando para mim um tempo,depois sorriu e disse com a voz rouca:

– O homem é dotado de uma inteligência diabólica, domina a superfície da Terra e as entranhas do espaço, assassinando impiedosamente tanto os outros animais como os seus semelhantes.

Calou-se o estranho visitante.

O som cavo de suas palavras, como que se distanciando no lento processo de absorção pelo silêncio, extinguiu-se todo.

Com as mãos trêmulas, apalpei a poltrona vazia ainda há pouco ocupada pelo sinistro mensageiro da descrença e do desespero.

Lentamente o sol descamba ao acaso.

Avermelha-se o ocidente aos últimos lampejos da grande lâmpada. Depois esmaecem as tonalidades vivas. Nos campos solitários. O curiango rompe o hierático silencia com seu canto nostálgico.

Anoitece…

Tudo é silêncio, e a natureza queda em profunda letargia.

Foi por acaso, por um desses acasos inexplicáveis o que, no conjunto de acontecimentos que revestem a nossa vida sempre se apresentam com as características singulares que lhes são próprias, que me chegou a triste notícia da morte, ocorrida a muitos anos, de minha professora Ruth Motta Mello.

Quase quatro décadas haviam transcorrido desde a última vez que a vi numa distante manhã em que, já de malas prontas, aparecera em casa para despedir-se de mim. Durante todo esse longo tempo eu não tivera a mínima notícia de minha professora não obstante ter sempre procurado localizá-la a fim de externar-lhe todo o meu reconhecimento pela maneira atenciosa e gentil com que me distinguiu durante os felizes quatro anos do curso primário que passei no Grupo Escolar de Novo-Horizonte, da qual era digna educadora.

E agora, sob o rude impacto da notícia dolorosa, senti a pungente aguilhoada da tristeza e da saudade. Um nó apertou-me a garganta, os olhos se me embaciaram, soltaram-se as rédeas do meu pensamento e um mundo de recordações se me apresentou. Vaguei, levado pela imaginação, para longe, para muito longe dos tempos atuais, para os domínios esquecidos de um passado distante, para a seara dulçorosa da minha infância despreocupada. Tudo revi, tudo se me apresentou como se por um passe de mágica o passado feliz se unisse ao presente tristonho.

Que importa se as imagens, pela ação inexorável do tempo não mais se apresentassem com o colorido encantador das antigas eras da minha vida?

A força da evocação compensa, em tais casos, o poder incoercível do tempo e eu pude ver ante meus olhos uma ininterrupta seqüência de fatos, num desfile de coisas mortas a ressuscitar, a viver novamente, a delinear no seu saudoso conjunto, árvores frondosas, estradas solitárias, uma velha igreja, a modesta casa em que nasci, o pequeno edifício do Grupo Escolar e, primeiro plano, a figura simpática e querida de Dona Ruth!

Ouvi-lhe, outra vez, os ensinamentos, os conselhos; acompanhei-lhe a característica contração que fazia para nos parecer severa ao repreender-nos por alguma peraltice ou má ação que tivéssemos praticado; ocasiões essas em que ela nem de leve poderia imaginar que nós, os seus alunos, vendo-a assim, mais e mais a estimávamos porque compreendíamos que, sob aquela aparente severidade, o que transparecia era o profundo sentimento de afeto por nós de seu boníssimo coração.

Desenha-se assim, em minha memória a imagem de uma pequena e modesta escola primária. Do fundo verde-escuro, representado pela fronde de velhas árvores, emergem contornos brancos do singelo edifício escolar. Constitui ele uma mancha clara pincelando com a diferença da cor o espesso colorido verde do estupendo e agreste quadro natural. Cobre-o telhado enegrecido pela ação de tantas chuvas que suportou e cujo tamborilar, naquelas remotas eras, soava sons aos meus ouvidos com acordes sublimes de uma canção divina e misteriosa.

Foi ali, dentro de suas velhas paredes, ouvindo a sinfonia do vento nas ramagens das árvores próximas, que eu tive a ventura de conhecer a única professora da qual recebi, os únicos ensinamentos que pude adquirir num estabelecimento educacional: o ensino primário.

Vejo-a ainda em sua mesa de trabalho com seus olhos negros a destacar-se do moreno pálido do seu rosto emoldurado pela vasta cabeleira castanha.

Vejo-a afagando os meus cabelos revoltos de garoto livre e sonhador, criado na vastidão sem limites da cidade de Novo-Horizonte. Recordo-me muito bem da última vez que a vi quando nos deixou, partindo para a cidade de Campinas, enquanto eu lhe depositava nas mãos o ósculo do meu respeito e da minha imorredoura gratidão.

Esta é a modesta e sincera homenagem que posso agora prestar como tributo de gratidão, a memória daquela que, sob moldes humaníssimos e quase maternos, abriu-me a réstea de luz da alfabetização da cartilha “Caminho Suave” de nossa educadora paulista, Branca Alves de Lima.

O estranho visitante nunca mais apareceu!

(*) é professor universitário, jornalista, escritor e amigo inestimável.

10 thoughts on “Adeus, professora – Crônica

  1. Silvana Marmo says:

    Olá Giba,
    Acredito que ninguem se esqueça da professora que lhe deu a oportunidade de ver o mundo com os olhos letrados.
    Muito lindo o texto.
    Meu carinho

  2. Yolanda Hollaender says:

    Também gostei muito da crônica – o autor nos leva a voltar no tempo. Impressionante a viagem que fiz!

    Tenho boas lembranças dos professores do antigo Primário.

    Obrigada por compartilhar, Giba.
    Meu afetuoso abraço,
    Yolanda

  3. Rose says:

    Nelson, muito linda sua crônica e fez-me lembrar da minha primeira professoa e da minha cartilha "Caminho Suave", da "Branca Alves de Lima",1° edição em 1948, estudei nos anos 60, quanto tempo!
    Parabéns pela crônica e obrigada amigo Giba por postar mais uma obra de Nelson Valente.
    Abraço
    Rose*

  4. Sissym says:

    Lendo este texto tão emocionante, eu fiquei lembrando de minha professora da alfabetização, ainda recordo do rosto dela e o quanto era doce.

  5. Gessy Miloch says:

    Que belo texto e linda homenagem prestada. Ainda bem que temos a capacidade de guardar momentos tão preciosos da nossa infância. Parabéns!
    Obrigada
    Abraços

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