Giba
O anúncio em boletins e websites da igreja foram recebidos com entusiasmo por alguns e com cautela por outros. Mas, acima de tudo, ele não foi compreendido por uma vasta geração de membros da Igreja Católica que não fazem ideia do que isso significa: “Bispo anuncia indulgência plenárias”.
Nos últimos meses, dioceses de todo o mundo têm oferecido aos católicos um benefício espiritual que há décadas deixou de ser popular – a indulgência, uma espécie de anistia dos pecados para evitar punições após a morte -, além de lembrá-los de como a igreja tem capacidade de mitigar o preço do pecado.
O fato de que muitos católicos com menos de 50 anos jamais procuraram obter indulgências, e nunca ouviram falar delas exceto no segundo grau, nas aulas de história europeia (quando Martinho Lutero denuncia a venda de indulgências em 1517, fazendo com que tenha início a Reforma Protestante), simplesmente torna a reintrodução delas mais urgente para aqueles líderes da igreja que desejam restaurar tradições de penitência em declínio naquilo que eles veem como um mundo auto-satisfeito.
“Por que estamos trazendo as indulgências de volta?”, pergunta o bispo Nicholas A. DiMarzio, do Brooklyn, que apoia a medida. “Porque existe pecado no mundo”.
Assim como a missa em latim e as sexta-feiras sem carne, a indulgência é uma das tradições que foi retirada das práticas normais dos católicos na década de 1960 pelo Concílio Vaticano Segundo, a reunião de bispos que estabeleceu um novo tom de simplicidade e informalidade para a igreja. O retorno da indulgência é visto como parte de uma ressurgência conservadora que gerou algumas mudanças discretas e outras altamente polêmicas, como a recente decisão do papa Bento 16 de suspender a excomunhão de quatro bispos cismáticos que rejeitam as reformas impostas pelo conselho.
A indulgência é uma das tradições menos notadas e menos contestadas a ser restaurada. Mas com mil anos de história e volumes de leis eclesiásticas dedicados aos seus detalhes, ela é uma das mais complicadas de se explicar.
Segundo os ensinamentos da igreja, mesmo após os pecadores terem sido absolvidos no confessionário e rezarem os Pais Nossos e Aves Marias como penitência, eles ainda podem ser punidos após a morte, no Purgatório, antes de ingressarem no Paraíso. Em troca de certas rezas, devoções e peregrinações em anos específicos, os católicos podem receber uma indulgência que reduz ou apaga instantaneamente a punição, sem nenhum sacramento ou cerimônia formal.
Existem as indulgências parciais, que reduzem o tempo de purgatório em uma certa quantidade de dias ou anos, e as indulgências plenárias, que eliminam completamente essa pena, até que um outro pecado seja cometido. O fiel pode obter uma indulgência para si próprio ou para alguém que já morreu. Não é possível comprar indulgências – a igreja proibiu a venda de indulgências em 1567 – mas doações de caridade, combinadas a outros atos, podem ajudar a pessoa a receber uma indulgência. Há um limite de uma indulgência plenária diária por pecador.
Ela não pode ser adquirida depois que se está no purgatório.
“O que é isso?”, pergunta Marta de Alvarado, 34, que é caixa de um banco em Manhattan, quando lhe dizem que as indulgências estarão disponíveis neste ano em várias igrejas da cidade de Nova York. “Eu simplesmente não sei nada a respeito disso”, confessa Alvarado, ao deixar a Catedral Saint Patrick na hora do almoço. “Porém, vou pesquisar”.
O retorno das indulgências teve início com o papa João Paulo 2º, que autorizou os bispos a oferecerem essa espécie de anistia em 2000, como parte da comemoração do terceiro milênio da igreja. Mas as ofertas aumentaram bastante sob o seu sucessor, o papa Bento, que tornou as indulgências plenárias parte das comemorações do aniversário da igreja nove vezes nos últimos três anos. A oferta atual está vinculada à comemoração de São Paulo, que tem um ano de duração e que vai até junho.
As dioceses dos Estados Unidos têm respondido com diferentes graus de entusiasmo. A oferta deste ano foi promovida energicamente em lugares como Washington, Pittsburgh, Portland, no Oregon, e Tulsa, em Oklahoma. Ela apareceu proeminentemente no website da Diocese do Brooklyn, que anunciou que qualquer católico poderá receber uma indulgência em quaisquer das seis igrejas em qualquer dia, ou em dezenas de outras em dias específicos, caso preencham os requisitos básicos: ir ao confessionário, receber a sagrada comunhão, rezar uma oração ao papa e “desvincular-se completamente de qualquer inclinação ao pecado”.
Mas na adjacente Arquidiocese de Nova York, as indulgências só estão disponíveis em uma igreja, e o website não faz nenhuma menção a elas (“O cardeal Edward M. Egan encoraja todas as pessoas a receber as bênçãos das indulgências”, diz o seu porta-voz, Joseph Zwilling, que acrescenta que sabia que a oferta não aparecia no website, garantindo que em breve ela será incluída).
Segundo os especialistas, as indulgências costumam ser anunciadas mais abertamente nas dioceses nas quais o bispo é mais tradicionalista, ou em locais onde há pouca tensão entre os católicos liberais e os conservadores.
“Na nossa diocese, as pessoas ficam satisfeitas com qualquer oportunidade de fazer algo de natureza católica”, afirma Mary Woodward, diretora de evangelização da Diocese de Jackson, no Estado do Mississípi, na qual apenas 3% da população é católica. Ela conta que recentemente os paroquianos compareceram à igreja para se informarem a respeito das indulgências. Segundo ela, a pergunta que eles mais fizeram foi: “O que mesmo eu tenho que fazer para obter uma indulgência?”.
Mas até mesmo alguns padres admitem que é difícil entender as regras.
“Não é muito fácil explicar as indulgências a pessoas que nunca ouviram falar delas”, diz o padre Gilbert Martinez, da Igreja Saint Paul the Apostle, em Manhattan, o local designado na Arquidiocese de Nova York para a obtenção de indulgências. “Mas, é interessante: muita gente veio até mim e disse, ‘Padre, não me confesso há 20 anos, mas a disponibilidade de indulgências me faz pensar que talvez não seja tarde demais'”.
Na verdade, um dos principais motivos para a reintrodução das indulgências foi trazer os católicos de volta ao confessionário. Em um discurso em 2001, o papa João Paulo 2º descreveu o renascimento dessa tradição como “um feliz incentivo” à confissão.
“As confissões estão em declínio há anos, e a igreja está muito preocupada com isso”, diz o padre jesuíta Tom Reese, ex-editor da revista semanal católica “America”. “Em uma cultura secularizada de psicologia pop e auto-ajuda, a igreja deseja que a ideia de ‘pecado pessoal’ volte a fazer parte da equação. As indulgências são uma maneira de lembrar as pessoas da importância da penitência”.
“A boa notícia é que não estamos mais vendendo as indulgências”, acrescenta ele.
A fim de permanecer em uma boa situação perante a igreja, o católico precisa confessar os seus pecados pelo menos uma vez por ano. Mas em uma pesquisa feita no ano passado por um grupo da Universidade Georgetown, três quartos dos católicos disseram que se confessam menos do que isso, ou que nunca se confessam.
Segundo as regras do “Manual de Indulgências”, publicado pelo Vaticano, as confissões são um pré-requisito para a obtenção da indulgência.
Entre os teólogos católicos liberais, o retorno das indulgências parece ser mais uma curiosidade do que um motivo para alarme. “Pessoalmente, acho que passou a época em que as indulgências significavam muita coisa”, opina o padre Richard P. McBrien, professor de teologia da Universidade de Notre Dame, que apoia a ordenação de mulheres e o direito dos padres ao casamento. “É como tentar colocar a pasta de dentes de volta no tubo do pensamento original. Se você disser aos católicos deste país que eles podem obter uma indulgência plenária, a maioria não dará a menor importância ao fato”.
Em uma tarde recente em frente à Igreja Our Lady Queen of Martyrs, em Forest Hills, no Queens, dois voluntários da igreja discordavam quanto à relevância das indulgências para os católicos modernos. Octavia Andrade, 64, uma secretária aposentada, riu ao lembrar-se da época em que as crianças dedilhavam rápida e repetidamente o rosário para obterem o maior número possível de indulgências – geralmente em múltiplos de cinco ou dez anos – “como se na época precisássemos disso”.
Mesmo assim, ela apoia a reintrodução. “Sou a favor do retorno de qualquer coisa antiga”, diz ela. “Um fervor maior é uma coisa positiva”.
Karen Nassauer, 61, assistente social aposentada de um hospital, que encontra-se com Andrade quase diariamente na missa, diz que está surpresa com o retorno de uma prática que ela nunca entendeu.
“Não estou dizendo que seja necessariamente errado”, diz ela. “Mas, para ser franca, eu sempre achei que eles deixariam essa prática desaparecer da memória. O que significa obter uma ‘redução de tempo’ passado no Purgatório? O que são ‘cinco anos’ em relação à eternidade?”.
As mais recentes ofertas de indulgências não enfatizam as formulações baseadas em anos de Purgatório, e sim uma conta menos específica, com um foco maior nas maneiras pelas quais as pessoas podem ajudar a si próprias – e umas as outras – a lidar com o pecado.
“Essa questão diz mais respeito à reza em benefício dos outros, a fazer boas ações e aos atos de caridade”, diz o padre Kieran Harrington, porta-voz da diocese do Brooklyn.
Depois dos católicos, as pessoas que mais entendem desse tópico são provavelmente os luteranos, cuja igreja nasceu a partir do cisma devido à questão das indulgências, e cujos líderes reúnem-se regularmente com as autoridades do Vaticano desde a década de 1960 em uma tentativa de reduzir as suas diferenças.
“Para nós, o momento escolhido para o retorno das indulgências é um mistério”, diz o pastor Michael Root, diretor da igreja luterana Theological Southern, em Columbia, no Estado da Carolina do Sul, que participou dessas reuniões. Segundo ele, o retorno das indulgências “não promoveu o avanço do diálogo”.
“O nosso principal problema sempre foi quanto à questão de quantificar a bênção de Deus”, afirma Root. Os luteranos acreditam que o perdão divino é uma dádiva, não sendo, entretanto, algo que a pessoa seja capaz de influenciar.
Mas para os líderes católicos, e especialmente o papa, o foco nos últimos anos tem se concentrado menos naquilo que os católicos possuem em comum com outros grupos religiosos do que no que os separa desses grupos – incluindo o semi-esquecido mistério da indulgência.
“A indulgência caiu no esquecimento assim como muita coisa na igreja”, diz DiMarzio. “Mas ela nunca foi abandonada. Ela sempre esteve lá. Só queremos que as pessoas retornem àquelas ideias que antigamente eram conhecidas”.