Ivani Medina
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Quando se diz “crença cristã” ninguém se ofende. No entanto, toda crença religiosa é uma invenção. Na Antiguidade os deuses pertenciam ao tempo mítico, um tempo sem precedência onde tudo era possível. Ninguém se perguntava nem quando, nem onde e nem por quê? Era somente a narrativa de uma historieta simbólica que tinha objetivo e função social no seio de um determinado grupo. Assim foi até que o cristianismo resolveu inovar, criando a sua divindade humanizada não mais no tempo mítico, mas no tempo histórico, no tempo onde normalmente se pergunta pelo quando, pelo onde e pelo porquê. E foi mais ousado ainda, pois havia concebido uma crença única para todos os grupos do mundo.
A doutrina cristã já veio com as respostas prontas, exigidas pelo tempo histórico, e tudo tem feito para que a sua origem “histórica” seja confirmada, isto é, a “história” da sua origem é parte da sua doutrina. Seguramente seus criadores estavam conscientes dos afazeres que isso implicaria às suas gerações futuras. Portanto, o cristianismo não foi trabalho de um grupelho. Certamente se iniciou assim, mas seus fundamentos encontraram acolhimento e continuidade porque partiam de uma consciência ampla que, no seu nível mais profundo, permaneceu oculta até Ludwig Feuerbach. Evidentemente, só mesmo uma identidade cultural muito forte seria capaz de dar sustentação a conhecimentos tão especiais, com a utilização de algo que contasse com respeito e a admiração do mundo helenizado – a filosofia. Foi ela a ferramenta da transformação.
Não foi por acaso que os membros da igreja patrística eram ligados à filosofia. Pelo fato de o cristianismo ser a primeira filosofia religiosa e ao mesmo tempo basear e constituir a cultura ocidental, ainda conta com significativa proteção no ambiente filosófico que permeia as atividades acadêmicas e é amparado pela cultura dominante. Isto não significa que não possam existir outras soluções para os domínios nos quais a religião se estabelece. Especificamente essa parte da história precisa ser passada a limpo e livrar-se das mentiras que só trouxeram constrangimentos a própria cristandade. A vara que não verga com o vento, acaba quebrando.
Os criadores da crença cristã não deviam ignorar que um dia a transposição da figura central – Jesus Cristo – do tempo mítico para o tempo histórico ia trazer problemas. Seria impossível convencer a todos, e todo o tempo, da sua frágil versão “histórica”. Esta lacuna da história ocidental que é preenchida pela bíblia, Novo Testamento, especificamente. Os crentes aceitam tal preenchimento como verdade histórica, devido o alcance sentimental desta filosofia religiosa séculos a fio. Outros também porque é a versão oficial e teve o apoio interesseiro de Engels, pois queria dar base histórica ao socialismo científico. Entretanto, os mais céticos, que não são poucos, querem ver esta lacuna preenchida com história e não com filosofia religiosa. Isto se considerarmos apenas o interesse histórico. Por que aceitar a utilização reversa da filosofia a reprimir o desejo de conhecimento?
Como um direito, eu não sou contrário às crenças religiosas. Trata-se de uma manifestação cultural como muitas outras. Todavia, quando esta específica manifestação se impõe sobre as demais, se arrogando num direito adquirido sob condições das mais discutíveis, oposição há de encontrar eternamente. Filosoficamente é possível se encontrar diversas justificativas por causa da plasticidade do pensamento e da habilidade mental de quem pensa. O antigo hábito da imposição de conceitos pela força, só começou encontrar dificuldades com o avanço da ciência e da tecnologia, por conseguinte, da economia e do progresso das comunicações. Não fosse isso, o mundo ocidental ainda estaria daquele jeito. O progresso tecnológico é algo imprevisível nos detalhes, ainda mais para os antigos, porém nunca como uma impossibilidade. Claro que aqueles que imaginaram o cristianismo não ignoravam o fato de que grandes transformações viriam com o tempo. A ausência de limites ao pensamento humano é perceptível às mentes mais primárias, ainda mais à mente de filósofos. Certamente, não havia ingenuidade na igreja patrística. A teologia da substituição que o diga.
A despeito de tudo, havia também a consciência das conquistas gradativas que caracterizam o aprendizado humano. Um projeto arrojado desse apresentava risco de encalhar numa das suas etapas por falhas dos seus continuadores, mas não tinha jeito. Durou muito até. Hoje, se encontra numa etapa difícil do crescimento do entendimento humano. Não se pode avaliar, como querem alguns, um movimento do porte e penetração do cristianismo, inclusive no tempo, como uma imbecilidade que deu certo, porque teve aproveitamento político de um estranho (Constantino). O cristianismo se propagou em todas as classes ao mesmo tempo praticamente, a partir do século II. Se imbecilidades estão pelo seu caminho, e sem dúvida alguma estão, talvez esteja nelas mais uma evidencia de genialidade, ou seja, a sugestão de uma origem popular que nunca existiu a confirmar a sua invenção histórica. Elaboração demais? Sim. Mas muitas circunstancias podem ter colaborado para isso. É o que se percebe, ao o analisarmos mais pelos seus acertos como uma obra política.
Há quem zombe dessa conclusão por considerar tudo fantástico demais (teoria da conspiração) até pelo trabalho de ter que reformular as próprias convicções, no entanto, crenças mais absurdamente fantásticas e diligentemente inventadas foram acolhidas por todos os segmentos das sociedades durante quase dois milênios. Junto com elas a mais absurda de todas: a crença de que o Homem precisa ser enganado para reagir positivamente. Mas, agora o prazo de validade, pelo menos desta crença, está vencido. Esse assunto desconfortável só está começando. Em nossa visão democrática ainda existem tabus e, para muitos, a liberdade de expressão deve baixar a cabeça a eles. Muito se têm apelado à responsabilidade social sob o argumento da intocabilidade devida aos bilhões de crentes, inclusive com a sugestão de censura à Internet entremeada de outros pretextos para disfarçar. As crenças religiosas que pretenderam o tempo histórico nunca se sentiram tão ameaçadas.
Defendo o estudo do cristianismo por todas as ciências com decisão, isto é, depurado das invenções e do receio de mágoas. É importante demais para que a pretensão ingênua de conservá-lo do jeito que está se sobreponha a necessidade de conhecermos em profundidade a nossa própria história. As religiões que se atreveram no tempo histórico terão de dar lugar às exigências do tempo que ora vivemos; tempo que elas mesmas consumaram. É impossível se fazer a omelete sem que se quebrem os ovos.
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Ivani de Araujo Medina é um Homem com a percepção do descompasso existente entre a história e o favorecimento ideológico ao cristianismo.
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