(*) Nelson Valente

Clarice Lispector morreu de câncer aos 56 anos de idade, no dia 9 de dezembro de 1977. Aquele mesmo ano viu a publicação de sua última obra, A HORA DA ESTRELA – aclamada pelos críticos como uma “alegoria regional” de extraordinária percepção e sensibilidade. Com mais de cem páginas, a narrativa de Macabéa, entretanto, pode ser lida em diferentes níveis, prestando-se a várias interpretações.

A sutil combinação ficcional e filosófica demonstra o raro talento de Lispector como escritora e sua perene influência na literatura contemporânea brasileira.

A fragmentada psicologia e as instáveis emoções dos humildes nordestinos já foram amplamente explorados pelos romancistas regionais dos anos 30, tais como: Graciliano Ramos e José Lins do Rego.

Alegria falhada, confusa e frustrada, tão pouco sou…inevitável Clarice Lispector.

Os aforismos entremeados no texto são sedutores: – A verdade é sempre um contato interior e inexplicável ; A vingança é coisa infernal; A cara é mais importante do que o corpo, porque a cara mostra o que a pessoa está sentindo, A HORA DA ESTRELA, traça uma comparação interessante entre ela como autora e a personagem criada, entre a razão e o instinto, entre conhecimento e inocência, entre poderes da imaginação e a realidade sem adornos.

O núcleo da narrativa focaliza-se nas desventuras e MACABÉA, uma jovem humilde do interior nordestino, cujo futuro é determinado por sua feiúra e total anonimato. A linguagem e as vestes de Macabéa traem suas origens. Sua existência banal pode ser sumariada em poucas palavras: Macabéa é uma péssima datilógrafa, é virgem e seu refrigerante predileto – COCA-COLA.

O seu súbito desaparecimento embaixo das rodas de um Mercedes é tão absurdo e inevitável quanto todos os outros infortúnios que acontecem à infeliz marginal.

Do ponto de vista factual, a história de Macabéa sugere um esteriótipo de pesquisa sociológica. Lispector dá início à investigação das conseqüências psicológicas da pobrea. Na situação de Macabéa a fé é pouco justificável, mas parece o mais óbvio caminho, para evadir-se da lógica.

Voam lascas…faíscas…aços espelhados…esteriótipo impressionável…pura felicidade dos idiotas…

Mês dos véus de noiva flutuando em branco. Então vêm as inevitáveis comemorações com sua colega Glória – extrovertida,curvilínea e triunfalmente loura, Glória é a encarnação daquela profunda sensualidade perturbadora espreitando o corpo tuberculoso de Macabéa.

Olímpico de Jesus Moreira, da Paraíba, também sugere em estereótipo social. Ciente de seu status na sociedade carioca procura não ocultar este senso de inferioridade, vangloriando-se de um passado criminoso. A impressionável Macabéa, durante o curto período do seu romance, considera a aliança entre Olímpico (metalúrgico) e ela (datilógrafa) como “UM CASAL DE CLASSE”.

O desajeitado diálogo entre Olímpico e Macabéa, a meio caminho da narrativa, com suas rápidas mudanças entre a imponência deslocada a uma farsa não-intencional demonstraram a trágica herança dos nordestinos, quer permanecendo em sua terra ou buscando fortuna em cidades do Sul. Estão presas a ásperas condições sociais e seus sonhos poucas relações com a realidade.

Lispector não nega a relação com a personagem, confessando abertamente: – “Através dessa jovem dei o meu grito de horror à vida”. A confrontação provoca um senso e náusea e de ultraje. O estranho fascínio exercido pela literatura de Clarice nasce de sua aptidão em “virar as coisas ao avesso”, revelando claramente o outro lado da realidade. Imaginação, poesia, a filosofia, une-se em perfeito equilíbrio.

Quando Lispector intervém na novela para lembrar ao leitor que “quem indaga é incompleto” está simplesmente reafirmando as aborrecidas dúvidas que rondam nossa existência. O ser humano que não costuma questionar seu estado mortal meramente vegeta e jamais transgredirá suas próprias limitações. Macabéa também, de modo confuso é tragada para dentro de um rico labirinto mental de enigmas não resolvidos. A autora vê em Macabéa o seu modo de buscar a iluminação.

Suas metáforas derivadas de parábolas, lendas e anedotórios são de efeito, porquanto sintáticas e engenhosamente construídas. A autora prefere o laconismo ao acúmulo. O trabalho de Lispector pode ser difundido como verdadeiro contemporâneo. Mestre da coerência verbal e psicológica examina a magia da invenção e generosamente compartilha seus segredos com o leitor. As palavras têm de ser avaliadas, manipuladas, orquestradas em seu sentido secreto.

A própria pobreza transforma-se em novo critério de poder. Seu legado é compatível a sua riqueza terrena. O maravilhoso destino – predito por Madame Carlota acontece. Logo que Macabéa sai da Cartomante, é atropelada por um Mercedes amarelo dirigido por um belo estrangeiro que vai embora, deixando-a agonizante na sarjeta e meditando sobre o seu estranho destino. A absurdidade de sua morte é inteiramente compatível com a existência que conheceu. A apoteose de Macabéa é deliberadamente vaga: “Ela é a iminência que há nos sinos que quase-quase badalam. A grandeza de cada um”. Metáfora astuta, enfatizando a supremacia do potencial sobre a força, da especulação sobre a certeza.

A meditação sempre sobrepuja a mera descrição nos trabalhos de Clarice Lispector. Personagens e situações são rapidamente esboçados em traços meramente essenciais.

A caracterização de Macabéa é centralizada na “delicada e vaga existência” da moça. A dúvida excede a certeza na análise lispectoriana da psique humana. Mesmo os aforismos no livro convidam à discussão e não à sua aprovação. Ele nos lembra do poder oculto nas palavras. A existência de Macabéa é mudada por palavras capazes de banir sua realidade: “O fruto da palavra” transforma-a numa mulher “grávida de fruto”.

No momento seguinte Lispector define – A Hora da Estrela – como uma obra “feita sem palavras… uma fotografia muda… um silêncio… uma pergunta”. Para Lispector o silêncio como a dor é fonte de eternas verdades.

Conclusão

Macabéa tem a inocência primitiva das heroínas de Jorge Amado em combinação com a desconcertante fraqueza das de Dalton Trevisan. Mas o “segredo inviolável” que seguia a odisséia da personagem de Lispector é único onde é inigualável. A transfiguração de Macabéa restaura nossa confiança…Hora da Estrela.

(*) é professor universitário, jornalista, escritor e amigo ineestimável

2 thoughts on “A Hora da Estrela – Clarice Lispector

  1. Silvana Marmo says:

    Olá Giba,
    Clarice consegue ser tão universal e particular ao mesmo tempo? Vi-me em tantos pedaços. Realmente, não tem nem o que falar dela. Além de escrever belissimamente bem, ainda tinha uma beleza estonteante!
    “O mundo todo é ligeiramente chato, parece. O que importa na vida é estar junto de quem se gosta. Isso é a maior verdade do mundo.”
    Precisa falar mais alguma coisa depois de uma frase desta?
    Reflete o desejo de muitos leitores e escritores que não se cansam de se admirar com a densidade-quase-desumana dos escritos de Clarice.
    Meu carinho

  2. Rose says:

    Giba, o Nelson acertou em cheio na escolha pois Clarice é minha preferida na área das mulheres, rs, quanto aos homens gosto de "Quintana".
    Ao mesmo tempo que ousava desvelar as profundezas de sua alma em seus escritos, Clarice Lispector costumava evitar declarações excessivamente íntimas nas entrevistas que concedia, tendo afirmado mais de uma vez que jamais escreveria uma autobiografia. Contudo, nas crônicas que publicou no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, deixou escapar de tempos em tempos confissões que, devidamente pinçadas, permitem compor um auto-retrato bastante acurado, ainda que parcial.
    A verdade é que a escritora, que reconhecia com espanto ser um mistério para si mesma, continuará sendo um mistério para seus admiradores, ainda que os textos confessionais aqui coligidos possibilitem reveladores vislumbres de sua densa personalidade.

    Adorei, obrigada !
    Rose*

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