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Que fim levou
Ex-jogador de Alegrete
Celeni de Oliveira Viana, ou apenas Celeni, foi atleta amador do futsal em grandes cidades do Sul do País. Em 2013, regia seu terceiro mandato como vereador de Alegrete, no Rio Grande do Sul, onde trabalhava por melhorias na saúde do município.
Natural de Alegrete, Celeni nasceu em 3 de novembro de 1962 e aos nove anos já ensaiava seus primeiros chutes em uma escolinha de futebol de sua cidade natal. Após doze temporadas vivendo pelo esporte, decidiu começar sua vida política.
Foi Delegado Regional de Saúde e já presidiu a Câmara dos Vereadores de Alegrete. Em 2013, seguia presidindo a União dos Legislativos da Fronteira-Oeste do Rio Grande do Sul.
Um fato marcante da carreira de Celeni Viana aconteceu logo no início de sua trajetória como atleta: em um amistoso entre Alegrete e Internacional, o atacante do modesto clube gaúcho dividiu uma bola com o então goleiro paraguaio Benítez, e acabou lesionando gravemente o arqueiro. Benítez teve complicações na medula e encerrou sua carreira naquela partida.
Confira abaixo, na reportagem de Leandro Behs para o Zero Hora, como foi o reencontro entre Benítez e Celeni Viana, em 2013:
“Celeni Viana sobe os 18 degraus do prédio típico de classe média do bairro Menino Deus. Alcança o segundo andar, ao vencer o corredor escuro e cujas paredes vertem umidade, devido às chuvas dos últimos dias, e encontra José de La Cruz Benitez Santa Cruz em frente à porta do apartamento 202, o goleiro que teve a vida transformada por ele, quase 30 anos atrás.
Celeni era o atacante da Associação Atlética Alegrete, quando aos 8 minutos de um amistoso de fim de temporada, chocou-se com a cabeça de Benitez. O goleiro do tricampeonato brasileiro invicto do Inter teve a sua carreira encerrada ali, no Estádio Municipal Farroupilha, aos 31 anos de idade.
– Que bom te ver, guri. Que coisa boa ver que tu está bem, que alegria. Tá com uma cara boa… Nunca mais tive notícias tuas.
A saudação, sincera, e com um sorriso nos lábios, é do dono casa: Benitez. O ex-goleiro caminha com dificuldade, apoiado na perna esquerda. Utiliza-se de uma muleta, à mão direita, para realizar pequenas e lentas manobras dentro do apartamento de três quartos, seu refúgio há anos. A perna direita jamais foi totalmente recuperada, apesar das três décadas de fisioterapia. Precisará de próteses nos joelhos – gastos pela carreira e pelo acidente de Alegrete.
Celeni tinha 19 anos naquela tarde de 4 de dezembro de 1983, quando o zagueiro Mauro Pastor recuou uma bola enforcada para Benitez, que precisou atirar-se aos pés do atacante e evitar o gol do time amador, contra o orgulhoso tricampeão gaúcho.
– Obrigado por me receber, Benitez. Obrigado por esse encontro – desabafa Celeni, olhos marejados, abraçado ao homem que também mudou a sua vida.
Camisa 11 da Associação Atlética, como era chamada a equipe alegretense, Celeni dá a sua versão: não tocou com o pé na testa do goleiro, mas com o joelho. O direito. Na ânsia de fazer o gol no consagrado camisa 1 do Inter e da seleção paraguaia, o atacante viu Benitez virando-se rapidamente para a bola e, em um instante, o goleiro caía ao chão.
– Saltei para não acertá-lo. Consegui tirar a perna esquerda, mas foi impossível evitar o choque com a direita e o meu joelho pegou na testa do Benitez – descreve Celeni. – Por muito tempo fui chamado de assassino. As pessoas passavam por mim, abriam o vidro dos carros e me xingavam. Com esse abraço, me sinto livre de uma condenação de 30 anos – completa o alegretense.
– Esse guri não teve culpa. São coisas do futebol, coisas da vida – perdoa o ex-goleiro. Antes do encontro no apartamento de Benitez, atacante e goleiro haviam se visto apenas uma vez após o acidente. Por recomendação de colegas de time, Celeni embarcou para Porto Alegre no dia seguinte. Veio ao Hospital Moinhos de Vento visitar Benitez. Ainda lembra de estender a mão para cumprimentá-lo, e a mão do goleiro cair, sem forças.
– Foi uma sensação horrível – recorda o atacante.
Benitez foi salvo por Paulo Rabelo, médico do Inter na tarde alegretense e atual diretor do clube.
– Rabelo é meu herói. Ele foi muito mais que um amigo, mais que um pai para mim – emociona-se Benitez.
Após o choque, o goleiro ficou caído na área, enquanto o jogo prosseguiu. Mauro Galvão, que assim como os demais corria para o ataque, reparou que Benitez seguia no chão. Voltou para perguntar se estava tudo bem. Viu o jogador sufocando, sem ar.
Acenou desesperadamente para Rabelo. O médico correu e, ao chegar ao paraguaio, de cara confirmou o pior: o camisa do 1 Inter estava tetraplégico – e com asfixia, decorrência da contusão medular.
– Perguntei ao Benitez: “tu bateu a cabeça?”. Ele me respondeu que sim, ao menos estava lúcido. Mas apenas os olhos e a boca mexiam. Do pescoço para baixo, estava paralisado – conta Paulo Rabelo.
Até então, a luta de Benitez pela sobrevivência era do conhecimento de poucos. Gilmar Rinaldi havia ingressado em seu lugar e o amistoso seguiu. Foi no vestiário, enquanto o uruguaio Ruben Paz fazia o gol da vitória colorada, aos 41 minutos do primeiro tempo, que o drama de Benitez se estendeu para a delegação. Ainda no gramado, o goleiro conseguiu recuperar a respiração, depois que Rabelo utilizou seus conhecimentos de primeiros socorros para segurar-lhe pela cabeça e ajudá-lo a retomar o fôlego. Assim que Benitez saiu de maca, do campo para o vestiário, o médico determinou ao roupeiro Gentil Passos que despisse o goleiro das chuteiras, luvas e ataduras. Tudo aquilo que pudesse comprimir a circulação. Apenas de camiseta e calção, sobre a cama improvisada no Alegrete, Benitez pediu a Gentil que lhe tirasse as chuteiras. O roupeiro começou a chorar. Benitez não sentia as pernas.
– No choque, Benitez bateu a cabeça e sofreu com o “efeito chicote”, quando a cabeça é atirada para trás e volta. A coluna amassou o nervo na hora, o que ocasionou paralisia dos membros superiores e inferiores – descreve Rabelo.
A esperança pela recuperação renasceu no goleiro ainda na Santa Casa de Alegrete. Enquanto conversava com Benitez, Rabelo percebeu fasciculações (movimentos involuntários dos músculos) em suas pernas. Apesar da paralisia momentânea, o corpo de Benitez reagia.
– Tu vai voltar a andar – falou o médico, olhando nos olhos assustados do goleiro que, aos poucos, começava a entender a gravidade da situação.
Celeni é vereador, Benitez cuida das “filhas” Rabelo e Benitez deixaram Alegrete horas depois do atendimento emergencial na Santa Casa. Embarcaram em um helicóptero do Exército, daqueles sem portas, de filmes de guerra. Mal conseguiam conversar, devido ao barulho das hélices. Desceram em Santa Maria. De lá, um jatinho trouxe os dois amigos para o Hospital Moinhos de Vento. Foi quando Benitez reencontrou a mulher, Ivana, gaúcha de Taquari. Eles ainda não haviam completado um ano de matrimônio. Casaram com pompa em 18 de dezembro de 1982.
– Benitez correu sério risco de vida na primeira semana hospitalizado. Teve infecção renal, decorrente do acidente. Sobreviveu porque sempre foi muito forte – afirma Paulo Rabelo. – Ivana surgiu como uma bênção na vida do Benitez – emenda o médico.
Com o acidente, o goleiro sofreu uma espécie de amassamento da medula. O cérebro envia o comando e a medula não consegue distribuir essa “mensagem” ao restante do corpo.
– Da cabeça para baixo, nada funciona – diz Benitez, tentando manter o bom astral, mas sem esconder um natural sorriso entristecido.
Aquele choque em Alegrete mudou os rumos da vida de Benitez e de Celeni. O atacante abandonou o sonho de ser jogador profissional. Fez uma promessa: se Benitez não voltasse a jogar, abandonaria o futebol. Anos depois, refez a vida, superou o trauma de ser chamado de “assassino” nas ruas do Alegrete e, hoje, é vereador em terceiro mandato na cidade. Futebol, porém, só na várzea. Aos 50 anos, Celeni é pai de sete filhos e avô de sete netos. Cintia, a primogênita, tem a idade do acidente.
Benitez e Ivana não puderam ter filhos. Têm duas “filhas”: a papagaia Princesa e a papafigo Bombom – um passarinho azulado, que à noite dorme deitada em uma caminha, com direito a coberta. Enquanto jogador, Benitez, um homem que pesa cerca de 120 quilos e é dono de 1m85cm de altura, já havia retirado os meniscos dos joelhos, por lesões. Entregue à preparação física, treinava carregando sacos de areia arquibancada acima, arquibancada abaixo. Hoje, anda com dificuldade, amparado pela muleta que o permite repousar o pé direito no chão, enquanto caminha com o esquerdo.
Os 13 anos de carreira mais o acidente de Alegrete cobraram o seu preço. Benitez pouco consegue sair de casa. Passa boa parte do dia sentado, assistindo a jogos pela TV. Ainda tem contatos no Paraguai e um bom olho para jovens jogadores.
Como empresário, nos anos 90, trouxe para Porto Alegre os mais importantes atletas paraguaios da dupla Gre-Nal: Arce, Gamarra, Rivarola e Enciso. A dificuldade de locomoção, porém, o fez abandonar a atividade. Antes, chegou a treinar o Santa Cruz e o São José, além de ter sido orientador de goleiros do Inter. O tricampeão de 1979 vive da poupança, de dois imóveis alugados em Assunção (PAR) e da aposentadoria de R$ 1,5 mil do INSS. Também convive com dores diárias, com as quais aprendeu a lidar, sem medicação.
– Já não sentia o efeito dos remédios. Sinto dores o tempo todo – relata o ex-goleiro.
Foi durante um encontro, na casa de Paulo Rabelo, na Rua da República, em 1985, que Benitez teve a revelação de que jamais voltaria a jogar. Após o jantar entre as famílias, o médico chamou o goleiro para uma conversa na sala de estar. Rabelo explicou detalhadamente por que, apesar da recuperação dos movimentos parciais de braços e pernas, o corpo de Benitez não permitiria o retorno ao futebol.
– Foi uma conversa dramática. Dura. Choramos abraçados – conta Rabelo.
Aos 61 anos, Benitez passa os dias com a sua companheira de vida, Ivana, no apartamento de uma calma rua no Menino Deus. Sai pouco. Sempre amparado por Ivana. Geralmente ruma para a piscina do Grêmio Náutico Gaúcho, ali perto, onde faz fisioterapia. Por vezes, visita os parentes em Assunção. Quase sempre com um sorriso triste no rosto.
– O que fica da vida são os amigos. E, graças a Deus, ainda tenho alguns bons companheiros na minha agenda.”
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