Ivani Medina

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Mentir na cara dura é tão antigo quanto a espécie humana ou quem sabe, até mais. A mentira mais antiga não é tida como tal e, pelo que se conta, nem é humana. Em Gênesis 1, 26 começa a encrenca: “E disse Deus: façamos o homem a nossa imagem e semelhança; […]”. Nossa? Sim, nas lendas mesopotâmicas, – Enuma Elish, mito da criação babilônico – das quais derivaram alguns contos bíblicos, os deuses criaram o Homem para lhes servir de escravo e não de concorrente. O Homem deveria ser inteligente suficiente para o jugo, mas não tanto quanto eles. Escravo inteligente demais nunca dá certo.

Experimentemos o filtro da versão mesopotâmica na presente leitura só para ver no que dá. Em Gn. 1, 27 encontramos a confirmação: “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou.” Não é para deixar dúvidas de que se trata de uma narração literal. Sendo assim, essa nova espécie teve a quem puxar em qualidades e defeitos de criaturas físicas. Mais adiante, em Gn. 2, 9, nos deparamos com a seguinte metáfora: “E o (os) Senhor (es) Deus (es) fez (fizeram) brotar da terra toda a árvore agradável a vista, boa para comida: e a árvore da ciência do bem e do mal.”

[…]. Algumas pessoas, por outro lado, entendem que esse versículo queira dizer que os humanos são criados à imagem espiritual de Deus, ou à Sua imagem intelectual, ou à Sua imagem moral. As questões são velhas, conhecidas e sem solução; de minha parte, estou disposto a confessar que simplesmente não sei o que esse versículo quer dizer.  (FRIEDMAN, 1997, p. 113)

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O-Pai-da-Mentira

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Pulando alguns versículos, para que não percamos o fio da meada, encontramos em Gn. 2, 16 e 17: “E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que comeres, certamente morrerás.” Sem nos deter no juízo moral da questão, pois a provocação do (s) criador (es) ao ser primário é clara, cabendo a este (s) a total responsabilidade por deslizes futuros. Pode-se, pois, inferir que a tentação ou o desejo de conhecimento e discernimento eram consubstanciais entre criador (es) e criatura.

Considerando o mito babilônico, esta metáfora pode sugerir uma ilegalidade implícita que seria o “pecado” que deu origem ao Homem, o pecado de Deus (es) e não o pecado do Homem. Se já existia uma linhagem de primatas que deu origem a nova criatura, que não se iniciou do zero, e os deuses serviram-se dela como base, ficaria caracterizada a violação de um sistema natural, o que é algo muito sério. Uma modificação genética que alteraria todo o código do planeta. A criação de seres que não pertenciam inteiramente à realidade dos deuses e tampouco a do planeta seria um crime. Como ajustar um ser intermediário do tipo, com inteligência especial mesclada a impulsos primitivos, satisfatoriamente?

Mesmo sabendo que haveria consequências para essa mistura explosiva, Deus seguiu adiante. Fez (ou fizeram) saltar muitos degraus na escala da evolução parte daqueles primatas, até então, perfeitamente integrados ao mundo de origem. Não se pensou em mais nada, senão livrar os deuses encadeados da pena de trabalhos forçados que os haviam condenado por rebeldia. Seus pares os anistiaram substituindo-os pela nova criatura, concebida apenas com essa finalidade. A ideia de que Deus fez o Homem para ser feliz no paraíso, e este perdeu a divina oportunidade por desobediência, passa longe do mito que a originou. Parece uma tentativa idealizada de uma edição censurada para remediar o que não tinha mais jeito.

Essa história começa a ficar ainda mais interessante quando aparece a serpente. Contrariando as advertências de Deus, esta provoca o seguinte, em Gn 3 – 4, 5, 6, 7: “Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo do bem e do mal. E vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela.”.

Batata! A serpente estava certa ao afirmar a mulher que Deus estava a mentir. Deus não desejava que o novo ser se equiparasse a Ele em inteligência ou discernimento. Porém, a tentativa divina de enganar não deu certo, por causa da serpente, símbolo da sabedoria. O feitiço virando contra o feiticeiro. A dificuldade teológica de se atribuir a evidência da primeira mentira à divindade culpou a serpente para disfarçar. Lembremos de que Satanás só vai aparecer mais tarde, em Jó, para levar a culpa de tudo o que é ruim.

Outra ocorrência curiosa nessa história a ser sublinhada é que a mulher experimenta a consciência antes do homem, mas é ele que terá ascendência sobre ela. É fato que elas amadurecem mais cedo. Um detalhe notável, sem dúvida alguma. Na sequencia, Gn. 3, 14; “Então o Senhor Deus disse à serpente: Porquanto fizestes isto, maldita serás mais que toda besta, e mais que todos os animais do campo: sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida.” Então a sabedoria (serpente) foi amaldiçoada, mas não se esclarece como se locomoviam as serpentes antes da maldição de Deus.

Todavia, o que é dito à mulher desperta mais atenção em Gn 3, 16: “Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará”. O anatomista norte-americano C. Judson Herrick descreveu o desenvolvimento do neocórtex nos seguintes termos: “Seu crescimento explosivo em fase tardia da filogenia é um dos casos mais extraordinários de transformação evolutiva na anatomia comparada”. Carl Sagan conclui no seu livro Os dragões do Éden, que “A expulsão do Éden parece ser uma metáfora para alguns dos principais acontecimentos biológicos na evolução humana recente”.

Prosseguindo, em Gn 3, 22: “Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, pois, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente, o Senhor Deus, pois, o lançou para fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado.” O novo ser, sem lugar no mundo em que havia se formado, constituiria uma descendência que passaria a sonhar com as estrelas, tangida por uma saudade inexplicável. Faz sentido?

            Deus cede (transfere? abre mão?) cada vez mais o controle visível dos acontecimentos aos seres humanos. Ou será que são os humanos que o tomam? Ou será que não é nenhuma das duas coisas, mas sim que, da mesma forma como as crianças crescem e se separam dos seus pais, também o tema da história bíblica é o crescimento, o amadurecimento e a separação natural dos humanos de seu pai e criador.  (FRIEDMAN, 1997, p.72)

Em Gn 3, 24: “E havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao Oriente do jardim do Éden, e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida”. No mundo dos deuses mestiços não entram. Vão bagunçar o mundo dos outros, mas no deles não.

Ora, Deus fez ou os deuses fizeram o Homem para tentá-lo com outra das suas criações (serpente), sabendo que ele iria cair na tentação, para depois expulsá-lo do jardim perfeito por desobediência? Isso não é coisa de gente séria ou a interpretação dessa história está errada. Já chamei a teologia de “engenharia da enganação” e não foi à-toa ou por mero insulto. Dão nó em pingo d’água para acomodar os maiores absurdos que a serpente da sabedoria não cansa de denunciar.

A mesma teologia que declara a serpente como “a manifesta personificação da desobediência e da provocação a Deus”, isentando-o da responsabilidade para condenar a modesta criatura humana, não é metáfora. É um escândalo. É como um Band-Aid numa fratura exposta, pois nesse momento da narrativa surge algo perturbador: a sabedoria (Sophia) denuncia a mentira aos inocentes e por isto é amaldiçoada por botar areia na farofa divina. Presume-se que, por herança, a sabedoria já estivesse na mulher e no homem primitivo, sendo ativada pelo conhecimento do bem e do mal (consciência). Bomba! O criador foi julgado pelas criaturas.

Nesse enredo, Deus estava mentindo porque receava as dotações da própria criação. Ele [Deus] não tinha consciência satisfatória do que havia criado (elaborado) e temia seus efeitos colaterais. Algo impossível de aceitar de um ser Onisciente, mas perfeitamente compreensível no Mágico de Oz. Daí sua divina insegurança, o medo de que a sua criação ainda pudesse viver para sempre denunciando eternamente o seu crime. Comer da árvore do conhecimento foi um “erro” induzido por ele mesmo [Deus] para liberar seus iguais, mas tomar da árvore da vida seria demais. Um risco ao universo, quem sabe?

Escravo muito inteligente nunca deu certo, pois acaba por dominar seu senhor. A importância da escravidão mental está na relação estreita entre as necessidades íntimas e ancestrais do indivíduo com a manipulação politica delas por terceiros. Um casamento perfeito, que se traduz no poder das regras atribuídas a um Deus polissêmico (multiplicidade de sentidos): se o acontecido foi bom e deixou alguém feliz, foi prova do amor divino. Do contrário, se trouxe uma tragédia, foi porque Deus sabe o que faz e o Homem não sabe o que diz, pois, como dizem, os planos de Deus são indecifráveis.

A conclusão que chego é que a história do Gênesis é tão polissêmica quanto quem a protagoniza. Trata-se de uma linguagem simbólica que não se sabe o que exatamente simboliza. Escorrega-se demais nas explicações para proteger uma tradição roubada. Refere-se ela de maneira velada a uma história muito antiga, como uma criação extemporânea, ou a o que então?

            Deus desaparece na Bíblia. Leitores religiosos e não religiosos por certo irão achar tal afirmação surpreendente e intrigante, cada qual por suas próprias razões. Confesso, de minha parte, que a acho estarrecedora. A Bíblia se inicia, como todo mundo sabe, num mundo em que Deus está ativamente e visivelmente envolvido, mas não é assim que termina.  (FRIEDMAN, 1997, p. 19)

A teologia procura manter o Homem nesse envolvimento “a serviço do Senhor” com a mínima consciência e a máxima ilusão [sobrenatural] alimentando interesses ocasionais. O antigo amor à sabedoria (filosofia) foi substituído pelo amor ao Senhor Deus, isto é, a sabedoria foi trocada pela obediência cega. Uma considerável moeda de troca bem cotada no mercado e a bancada evangélica que o diga. Cuidado com ela Brasil! Podem negar à vontade, mas é o que acontece.

O pai da mentira não é o Diabo como consta em João 8, 44. Esta referência dissimulada é um resíduo da execração pela qual passou Deus – quando pertencia somente aos judeus – junto às primeiras seitas cristãs na luta que se travou contra a expansão do judaísmo no mundo pagão, no período greco-romano. Para uns tantos, esse mesmo Deus da Bíblia, louvado hoje em todas as igrejas, era o demiurgo mentiroso que lançou almas ao desditoso mundo da matéria. Isto, antes de ser reabilitado por Irineu e outros na sintetização do antídoto [cristianismo]. O mesmo Deus, polissêmico por conta da teologia, que constituiu uma numerosa família por intermédio da sua orgulhosa filharada, que jamais parou de dar ótimos exemplos da mais assombrosa hipocrisia.

Para quem se interessar, o resto Ludwig Feuerbach explica.

 

 

Referências:

FRIEDMAN, Richard Elliot. O desaparecimento de Deus: um mistério divino. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

SAGAN, Carl. Os dragões do Éden. São Paulo: Círculo do Livro, s/ data.

6 thoughts on “O Pai da Mentira

  1. Ivani Medina says:

    Caro Giba,
    Agradeço demais o seu gentil e extenso comentário. Meu alvo é o meio acadêmico, o que mais vier é lucro. Para os cegos o Alfredo é a luz. Ele tem feito um trabalho significativo ao longo dos anos. Já ouvi gente se referindo bem ao trabalho dele.

    Minhas afirmações são sempre demonstradas, isto é, não são tiradas da cartola. São decorrentes de estudos e experiências de outros. Exatamente como se constrói tudo que existe pela mão do homem nesse mundo. Creio que por isso, pude contar com o valoroso apoio de um crente pelo qual devoto amizade e muito respeito por quem ele é.

    Sempre resisti forçar a desconversão religiosa das pessoas. Cada um tem o seu tempo e outros seus motivos para permanecer assim o resto da vida. Não me vejo no direito ou na obrigação disto. Fato que nada tem a ver com a inteligência, como muita gente pensa. O que faço é fazer pensar a partir de informações que presto. Adoro fazê-lo no amplo sentido.

    Grande abraço.

  2. Gilberto says:

    Ivani,
    Seu texto é direto, objetivo e muito bem escrito.
    Tenho certeza de que ele servirá de base para muitos pesquisadores independente que estão em busca da verdade, mas de nada adiantará para os cegos fieis do deus de ilusão.
    Em outra oportunidade eu já havia lhe dito o que vou repetir aqui:
    Dizer a verdade implica em assumi-la e assumi-la implica em assumir responsabilidade sobre o que se está afirmando.
    Desde os tempos mais remotos o homem vem atribuindo aos deuses ou aos fantasmas as manifestações naturais que não pode compreender, porém com o avanço da ciência, as explicações vieram e foi necessário mudar a estratégia, atribuindo aos deuses e aos fantasmas as suas falhas de personalidade, exemplo:
    1) Eu fiquei irado com você, mas não por culpa minha, pois foi o diabo que me sugestionou.
    2) Em seu aniversário eu acertei o presente que você queria, mas não foi por conta de minha boa observação ou porque lhe conheço à décadas, mas foi deus que inspirou meu coração para lhe comprar este presente.
    3) O avião apresentou defeito e o piloto aterrissou com segurança no Rio Hudson, pois a mão de deus o guiou, sem deus ele não seria capaz de tal proeza.
    4) Hitler era um bom homem, mas se deixou influenciar pelo diabo e acabou sendo instrumento de tantas atrocidades.
    Nestes exemplos vemos como a cabeça do fiel funciona, polarizando as ações e reações em deus e diabo, sem responsabilizar diretamente o ser humano que age em primeiro plano, transferindo este mesmo critério de raciocínio e julgamento para sua vida pessoas, lhe tirando o próprio mérito e atribuindo ao invisível.
    Na questão bíblica, as histórias nelas contadas me parecem na maior parte dos casos, uma compilação das crônicas tradicionais de uma cultura, como as histórias que contamos para nossas crianças sobre o Boitatá, o Saci, a Cuca e o Curupira.
    Se você apelar para a lógica, para o raciocínio, nem nossas lendas folclóricas nem a bíblia passam no teste de confiabilidade e veracidade.
    Quando deus diz ao homem, segundo a gênese, não provarás do fruto da sabedoria, me parece mais o discurso de algum líder, tipo Lula, dizendo para seu povo, a verdade e a sabedoria me pertencem, pois sou o líder, então se recolham a sua insignificância e deixe as coisas sábias para que eu decida por vocês.
    Se deus já tinha concebido todo mundo vegetal e havia apenas duas pessoas em todo o planeta, porque raios Adão teria que ir arar terra para plantar?
    Em outras palavras, pegaram vários textos de várias lendas e fizeram uma colcha de retalhos, se procurar bem, qualquer pessoa encontra as linhas das costuras e acaba por descobrir cada pedaço de qual lenda se originou.
    Espero que você faça a continuação deste texto até chegar ao apocalipse.
    Grande abraço

  3. Ivani Medina says:

    Pois é, Ávila.

    A coisa é tão maluca que tentam se apoiar na razão para apoiar as bizarrices que afirmam. Tentaram expurgar a razão, mas não conseguem viver sem ela. No entanto, nós conseguimos viver sem as crenças e não precisamos delas para nada. Será que isso significa alguma coisa? Bom, bolso vazio depende de quem…

    Obrigado pelo seu comentário e um grande abraço.

  4. Ávila Lopes says:

    As mitologias adotadas pelas religiões como forma de explicar o mundo sempre esbarram no vigoroso obstáculo da razão. Salvo se as considerarmos apenas como mitologia, estarão sempre acuadas pelo desenvolvimento moral e científico. São cada vez menos solicitadas as causas sobrenaturais como forma de conhecer o universo. Nas palavras do astrofísico Neil Tysson de Greese ” deus é um bolso cada vez mais vazio”.

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