PT7ARQ - Raquel de Queiroz 3
Raquel de Queiroz
fala sobre o radiomadorismo em sua crônica publicada na revista “O Cruzeiro” de junho de 1962. A autora foi radioamadora: PT7ARQ.
CORUJA
Raquel de Queiroz
Bem, é o que sou. Não a propriamente dita, mas em linguagem de radioamador. Pois coruja é o radioamador ouvinte, o que não tem transmissor e liga o receptor em casa, para ficar ouvindo as conversas dos outros. Divertimento barato, aliás. Não precisa sequer ter-se um receptor de alta categoria: basta um pequeno transistor desses japoneses, de contrabando, acrescentado de uma antena de nove metros de fio de aço de pescador. O importante, além disso, é que o transistor tenha faixa de onda de 40 metros, que é por onde se manifestam os radioamadores da rede local. O mais é constância e paciência.E penetra-se num mundo de que não suspeita o simples cidadão, acostumado a escutar apenas as emissões comerciais de TV e “broadcasting”; pululando a nosso redor, insuspeita, mas permanente e ativa, funciona em volta do mundo todo uma imensa rede de estações de rádio, manipuladas por radioamadores que estabelecem pela Terra inteira uma cadeia de comunicações, muito mais eficiente que os serviços públicos, oficiais ou particulares. A boa vontade é o seu lema, a solidariedade humana a sua obrigação. Quem viu aquele filme francês “Si tous les gars du monde”, pode fazer uma idéia do fenômeno . E não se trata de conversa de fita de cinema, não; é assim mesmo daquele jeito que eles se comportam, da Noruega ao Congo, de Ver-o-Pêso à Vigário Geral.Um radioamador é assim uma espécie de cruza entre escoteiro e “santo” de sessão espírita; do escoteiro tem a mania de bem servir, de não deixar passar um dia sem realizar um ato de bondade, muitos atos de bondade. Do espírito tem a faculdade de baixar no terreiro da gente a uma simples evocação, e ainda por cima servir de “cavalo” para qualquer mensagem de importância grande ou pequena, que você queira transmitir ou receber. Pois para que a mensagem seja transmitida, não precisa sequer que o interessado escute o apelo de quem chamou: há sempre um colega serviçal que escuta, toma nota e passa adiante, feito atleta com o fogo simbólico.Os radioamadores que se encontram diariamente a uma hora certa, em grupo, formam o que se chama na gíria deles uma “rodada” . Pode ser das cinco às sete da manhã, de uma às três da tarde, de dez à meia-noite, a rodada não deixa de funcionar, nunca. É só procurá-la na freqüência habitual e lá estarão eles, com os companheiros do éter, a “assinar o ponto”, a bater papo, a comentar as marcas, as excelências e os defeitos técnicos das respectivas transmissões, enchendo lingüiça até que apareça o que eles consideram “serviço sério”: recados de urgência, mensagens, comunicados de falecimento, de doença, de nascimento, de viagens, de mudanças; promoção de encontros de famílias ou amigos separados; um de Pará de Minas outro de Barra do Corda, trocando comunicados afetuosos ou urgentes, que “Mamãe foi operada. e esta passando bem”, que “a festa das bodas de ouro é terça-feira, sem falta, veja se vem mesmo!” E o dono da estação de rádio é o médio. Num país onde os telégrafos tão pouco funcionam o os correios ainda menos, calcule-se o valor dessa comunicação. O que uma troca de telegramas pediria, no mínimo, alguns dias – e isso em lugar onde haja telégrafo – o radioamador resolve num quarto de hora.Creio que a rodada mais famosa do Nordeste é o chamado o “Cafezinho da Manhã”, que funciona diariamente das cinco e meia às sete e engloba uma rede de radio- amadores que vai da Bahia ao Maranhão, com incursões por Minas, Pará ou até onde for a onda de 40 metros. Seu criador e animador é o “Caboclo Xavante” das tabas ao “Queixeramobim”, que em geral dirige a rodada, dá a palavra a quem de direito, mantém a disciplina da reunião, faz, como eles dizem, “a roda rodar”.É homem extremamente cortês, que pode estar apressadíssimo para “dar o pirulito”, mas não dispensa os cumprimentos à Labre, à escuta oficial, aos colegas, de um em um, incluindo os “familiares”, sem esquecer a “rede regional de corujas”, da qual faço parte .Mas, sendo assim disciplinador e comandante da rodada, responsável peIo seu tom permanente de cortesia e boa camaradagem , deixa de ser o seu tanto galhofeiro, e está sempre pronto a zombar das conhecidas franqueza ou estrepolias de uns e outros, da submissão dos “barrigas brancas “, das indiscrições de algum “cavalo de cão”, e insinuar maliciosamente às esposas na “coruja” as possíveis peraltagem dos maridos em viagem … Nunca o vi em carne e ossos, mas é pessoa que trago no coração; conheço-lhe a voz entre dezenas, é realmente espírito familiar e benéfico, desses que, nos terreiros, são chamados de “guias “. O outro comandante do cafezinho o é mesmo mandante do seu direito, alta patente Militar e importante função oficial; mas para nós, é, simplesmente, “o Chaguinha “. Esse conheço de longe, é um velho amigo dos tempos em que a gente pensava que podia consertar o mundo com discursos e boletins, um dos mais eficientes e prestativos da rodada . Perde horas do seu tempo precioso importante para um recado, tranqüilizar uma mãe aflita, conseguir um avião que traga um enfermo de algum lugarejo distante, obter a vacina. Dantes era mestre em broncas, especialmente contra os mal educados que invadem a freqüência, abafando a voz dos colegas e atrapalhando as rodadas: agora, não sei o que he deu, está muito manso. Os anos de cidade e as funções oficiais não lhe alteraram a fala típica de sertanejo e a sua sertaneja paixão por saber notícias de chuva. Ah, se soldado pode ser flor, está, ali, uma. Outros membros do cafezinho são da mais variada procedência, padre e juiz, dona-de-casa, general, moço rico, pequeno funcionário, comerciante, fazendeiro, até bispo! Tem de tudo ali, reunidos todos numa só fraternidade, tratando-se por você, ninguém querendo ser melhor do que os demais. Com o truque nemonico, usam uma espécie de pseudônimo tirado das iniciais dos seus prefixos: é o “velho fazendeiro”, “cabloco serrano “(não falei que eles parecem gente de terreiro? Até essa mania de se chamarem “caboclos”. , ). Um mais lírico, diz-se “Viva o nosso lar “. Outro se chama “xadrez-lamparina”. E tem o Zé Calado”, e um meio maldizente a quem os colegas apelidam de “língua danada” . Usa, além disso, uma gíria particular, em que expressões técnicas e jargão familiar se misturam. Tratam-se entre si por macanudos. Um recado é torpedo; automóvel é pé de borracha, mulher é cristal; dar sinal no meio da conversa dos outros é dar uma bicorada; falar ao microfone é modular, e ter estação forte que abafa todo o mundo é ser tubarão etc. etc. Mas parece que, em conversa de radioamador, é proibido falar em negócios, em política e em dinheiro, regra a que eles obedecem com fidelidade. Exceção feita em casos e que aludir a dinheiro é indispensável – preço de material de rádio, de premente necessidade de alguém distante que lembra a mesada ao pai ou o numerário para uma emergência; eles, então, usam metáforas mais ou menos transparentes, como “quilociclagem”, “combustível”, “manteiga”. E assim servem e alegrar o mundo, “fazendo a roda rodar”, benza-os Deus.
Texto retirado de Valvulas Eletrônicas

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