Davambe
Bendito seja Deus, por permitir que as pessoas se questionem o que levar à boca, que é a porta de entrada dos alimentos para nossas intimidades.
Desde que nos tornamos independentes da dita metrópole portuguesa, somos livres, soberanos para não mais seguir os métodos rígidos da disciplina que o assimilado era obrigado a obedecer. Raramente encontraremos, se buscar, alguém que ainda se lembre desses métodos. Caminhamos com as nossas pernas e temos nossas metodologias do bom proceder.
O que levar a boca?
Dona Maria de Vargem Grande, senhora dedicada à família, simpatizante das boas maneiras, ficou pensativa, triste ao ver o neto António, desde as primeiras horas do dia com um saquinho de biscoitos e um vídeo game. Parecia que o menino era robô, pegava os biscoitos e os metia na boca, sem mesmo olhar. Estava concentrado no jogo.
“Venha almoçar, menino!” Fingia não escutar e continuava com seus jogos eletrônicos. Quando bem entendia ia almoçar.
Começava então o tiroteio do que colocar no prato. O menino berrava ao ver cenoura e alface no prato, para ele aquilo não deveria fazer parte de sua refeição. Desesperava-se, chorava e mandava tirar, para ele a refeição tinha que ser bife e arroz, acompanhado de refrigerante, claro.
Sua mãe tentou proibi-lo de ficar muito tempo no vídeo game e orientá-lo para uma refeição balanceada. Com legumes. Seguindo orientações da nutricionista que havia consultado. Não houve quem o convencesse.
“Deixa o menino comer o que gosta. Quando você era criança, também era assim, e não morreu.” Sua avó passou a defendê-lo. Pior, fazia doces que seu neto devorava em questão de seguidos e dizia, “nossa, esse menino é um formigado”.
O Tempo foi passando, o menino ganhando peso e cada vez mais se fechando no seu quarto com computador. Muitas doenças foram se apossando do seu corpo. Tinha dificuldades para andar, passou a frequentar a sala do médico. A primeira vez amputou um dos dedos do lado esquerdo do pé. Ouviu aviso, “se não tomar jeito, vai perder o pé”. Dois meses depois, seu pé esquerdo foi amputado. Ele se isolava mais ainda, com pena da sua situação de perder o pé para os doces.
Sua avó, assistindo a desgraça do neto, ficou contrariada, cabisbaixa, como uma galinha a pressentir o abate, sem crédito. Desprovida de
dignidade… Isso não, ainda restava um pouco. A velha andou com choraminhices, sumiu sem dizer adeus. Desapareceu. Ocasionando angústia à sua filha, que sua alma já sentia o peso do corpo, queria se separar do corpo? O menino vendo a mãe triste organizou uma campanha para a comunidade ajudar a localizar a avó. Foi então que com muito sacrifício começou a comer legumes. No primeiro dia vomitou, mas também não comeu bife com arroz. Passou fome. No segundo dia tentou novamente. A comida não parou no estômago, voltou a terra. Vomitou. No terceiro dia, quase moribundo. Conseguiu comer normalmente. As lombrigas agradeceram e pararam de roncar.
Sua avó foi localizada no rio Feio, não longe da cidade onde morava. Foi trazida para o convívio familiar. As duas senhoras se uniram, alinharam os seus pensamentos e atitudes para ajudar o menino. Sua avó parou de fazer doces. Sua mãe retornou à implementação das orientações da nutricionista para uma refeição balanceada e o menino colaborou para o sucesso da operação. Foi envolvido em atividades físicas, eventualmente usava o computador.
O Menino se tornou o mais novo assimilado depois que o país ficou independente. Era um assimilado não por força de adaptação do âmbito da colonização, mas no saber o que levar para a boca. Consultava o manual do bom proceder, sempre que aparecia um alimento para consumir, lia o pequeno documento que levava sempre com ele no bolso, palpava a barriga, dizia:
“não posso comer isso, xô gordura!”. Esse era o jeito que tinha encontrado para se manter sadio com a única perna que ainda restava.