Ivani de Araujo Medina
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No momento em que surgem no Brasil as PECs de origem religiosa que só se criam na lama, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 99/2011) que aumenta o poder das igrejas, se faz necessário lembrar que ainda sobrevive um pouquinho da antiga e desconhecida decência cristã, em meio a tanta desilusão provocada pela esperteza humana no ambiente beato.
Minha antiga fascinação pela história mundana do cristianismo se deve à curiosidade pela proeza incomparável de alguns que invadiram o terreno da história, assim como os seus inconfessados motivos. Quem não gosta de uma boa história de mistério? E de verdade, ainda por cima. Como é possível se manter enganadas há tanto tempo bilhões de pessoas? Uma situação perversa, pois é justamente o engano de tantos que lhes dá a certeza de estarem certos.
No entanto, quanto mais o tempo avança, mais a religião se vê na iminência de retornar aos seus antigos limites, para não cair no descrédito total junto aos corações mais sérios e profícuos, na medida em que essa história vai se tornando cada vez menos misteriosa. Aliás, no início mundano da história do cristianismo, no século II, não havia nada que contrariasse a necessidade racional da crença religiosa.
Muita gente desconhece que daquele jeito antigo, o cristianismo não estaria sob a ameaça que hoje se encontra. O problema é que a sua história nada bonita, como aquela fictícia contada pelo Novo Testamento, pois até hoje nada dela foi confirmado, incomoda profundamente a um tipo de cristão que não aceita mais dar prosseguimento a farsa criada pela ortodoxia vitoriosa. Mas o que é a ortodoxia cristã, origem desse cristianismo clientelista que hoje conhecemos com suas estórias espantosamente absurdas?
“Por que o consenso de igrejas cristãs não só aceitou essas noções espantosas, mas instituiu-as como a única forma verdadeira de doutrina cristã? Tradicionalmente, os historiadores sempre disseram que os ortodoxos rejeitaram as concepções gnósticas por motivos religiosos e filosóficos. Certamente que sim; contudo, uma investigação das fontes gnósticas recém-descobertas sugere uma outra dimensão dessa controvérsia. Nós começamos a ver que tais discussões religiosas a cerca da natureza de Deus, ou de Cristo, têm simultaneamente implicações sociais e políticas que foram cruciais para o desenvolvimento do cristianismo como religião institucional. Em termos bem simples: as ideias cujas implicações eram contrárias a tal institucionalização foram taxadas de “heresia”; as ideias que implicitamente apoiavam tornaram-se “ortodoxas”. (PAGELS, p. 32, 33)
A maioria quase absoluta das pessoas ainda pensa que o início do cristianismo se deu na Palestina, no século I, com a pregação de Jesus Cristo e seus apóstolos. No entanto, a história confirmada do cristianismo aponta para outra realidade e região: a região da Ásia Menor e a cidade de Alexandria, dois focos de atritos entre a população judaica e a população não judaica, no século I. O cristianismo real, que veio a se desenvolver somente no século II, continua eclipsado pelo chamado “cristianismo apostólico” do mundo das lendas.
“[…] Como vimos, diversas formas de cristianismo floresceram nos primeiros anos desse movimento. Centenas de mestres, concorrendo entre si, afirmavam ensinar “a verdadeira doutrina de Cristo”, denunciando uns aos outros como charlatães. E os cristãos pertencentes as igreja que se espalhavam da Ásia Menor à Grécia, Jerusalém e Roma, dividiram-se em facções, debatendo a liderança das igrejas. Todos diziam representar “a tradição autêntica”. (PAGELS, 1995, p. 38)
Esse é o cristianismo primitivo e briguento existente na história, bem diferente daquele que divide o pão. O Cristo, que ainda não era Jesus, foi levado por alguns do tempo mítico para o tempo cronológico, o tempo histórico, para atender às suas necessidades políticas e não fundamentalmente religiosas. Isto explica o porquê dos desmandos com os quais o cristianismo se envolveu ao longo do tempo e continua a se envolver até hoje.
“Não só os primeiros cristãos se apoderaram quase completamente dos mitos e ensinamentos dos seus mestres egípcios, mediados em muitos casos pelas religiões de mistérios, e pelo judaísmo nas suas expressões, mas também fizeram tudo ao seu alcance para destruir as evidencias decisivas do que aconteceu ? pela falsificação e outras fraudes, queimando livros, eliminando personalidades e cometendo assassínios propriamente ditos. No processo, apropria história cristã, que muito provavelmente começou como uma espécie de encenação dramática espiritual, juntamente com uma fonte de “aforismos” baseados em material egípcio, foi convertida em uma forma de história em que o Cristo do mito tornou-se uma pessoa de carne e osso identificada como Jesus (Yeshua ou Joshua) de Nazaré. […]” (HARPUR, 2008 p. 26)
Tom Harpur, colunista do jornal canadense Toronto Star, acadêmico de Rodhes e ex-pastor anglicano, professor de grego e do Novo Testamento na University of Toronto e escritor sobre temas religiosos e éticos, é um dos, já não tão raros, exemplos da antiga decência cristã, felizmente.
A forma literalista da ortodoxia, que inventou Jesus Cristo ou de Nazaré, segundo Harpur resulta da descida da forma original esotérica (ensino destinado a discípulos qualificados) para a forma política ou exotérica (passível de ser ensinado ao grande público) que se choca eticamente com a interpretação tradicional do antigo mito de Cristo e explica o grande progresso e a blindagem da hipocrisia religiosa com o auxílio da grande massa de fiéis inocentes.
“A grande verdade de que Cristo viria dentro do ser humano, de que o princípio de Cristo existia potencialmente em cada um de nós, foi mudado para o ensinamento exclusivista de que o Cristo veio como homem. Ninguém poderia equiparar-se a ele, nem mesmo aproximar-se dele. […]” (HARPUR, 2008, p.17) O mesmo teor de conteúdo encontramos ilustrado pela conhecida historiadora cristã Elaine Pagels: “Quem alcança a gnose torna-se “não mais um cristão, mas um Cristo”. (PAGELS, 1995, p. 155).
Harpur se refere àquilo que resultou na grande blasfêmia para os judeus de um homem-deus surgido no judaísmo. Algo tão inconcebível e nojento para eles quanto à eucaristia. Os judeus só comem carne dessangrada (kosher ou pura), pois a alma do animal está no sangue e não se pode ingeri-la, na crença deles. Portanto, a simbologia de comer carne humana e beber sangue jamais poderia ter surgido no judaísmo.
O personagem Jesus Cristo passou a existir pela necessidade inconfessada de se dar uma nova versão ao mito de Cristo, uma vez que a grande massa popular em toda bacia mediterrânea já estava acostumada ao cristianismo de *Serápis, inclusive a essa concepção eucarística da religião de mistérios do deus Mitra. As religiões de mistérios como a de Serápis se confundiam e se relacionavam sem constrangimento algum, podendo o mesmo altar servir a mais de um deus ou deusa.
*Serápis (Osiris+Ápis) foi um deus heleno-egípcio cujos templos se espalharam por todo o Mediterrâneo. Uma carta do imperador Adriano de 134 nos dá ciência desse cristianismo ignorado. O antigo culto a Osíris, o deus dos mortos, tinha por hábito ungir o cadáver com óleo perfumado na preparação para outra vida. O termo egípcio para o ato era Karast ou Krast. Osíris era, portanto, o ungido, o Cristo e seus adoradores os cristãos.
“No entanto, os cristãos ortodoxos insistem que Jesus era de fato um ser humano, e que todo cristão de “reto pensar” deve tomar a crucificação como acontecimento histórico e literal. Para assegurarem-se disso incluíram no credo, como elemento fundamental da fé, a afirmação de que “Jesus Cristo padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”. (PAGELS, 1995, p. 100).
Mas por que Jesus Cristo teve que ser histórico e judeu, quando mito não possui naturalidade? Quando nos debruçamos sobre os quatro primeiros séculos com o intuito de entender os conflitos existentes entre os principais personagens do relato bíblico, refiro-me a romanos, gregos e judeus tudo vêm a se esclarecer.
Houve um confronto cultural do qual não se deu notícia. Os gregos dominavam a cultura no mundo antigo e essa hegemonia estava ameaçada pela expansão do judaísmo, que contava com o apoio das leis romanas desde Júlio César. Inventando-se um Jesus Cristo histórico e judeu matavam-se dois coelhos com uma só cajadada. Foi essa a escolha da ortodoxia cristã que se impôs ao gnosticismo cristão.
O artifício de se chamar gregos e helenizados de “pagãos” e os gregos cristianizados de “cristãos”, funciona como uma cortina de fumaça, pois o nome “grego” só aparece quando se refere aos gregos não cristãos, ocultando, portanto, a identidade natural dos verdadeiros propagadores do cristianismo, que nunca foram os judeus. O cristianismo foi concebido e propagado pelos gregos e por uns poucos latinos, como um antídoto contra o proselitismo judaico.
O conflito entre o cristianismo e o judaísmo que irrompe no Império Romano é amiúde interpretado pelos especialistas a partir de duas perspectivas. A primeira delas, voltada para uma compreensão global da intolerância contra os judeus ao longo da história, tende a atribuir aos autores cristãos, em especial aos Padres da Igreja, a responsabilidade pela intensificação de um antigo preconceito nutrido pelos pagãos contra os judeus, ao mesmo tempo em que se apropriam de toda a herança veterotestamentária, fazendo dos cristãos o novo povo eleito. Desde a Antiguidade teria se constituído, assim, uma corrente de pensamento antissemita, fruto da intolerância e da incompreensão dos cristãos para com o judaísmo que iria desembocar nas experiências totalitárias contemporâneas. Para Ruether (1974, p. 246 e ss.), por exemplo, haveria uma certa continuidade entre a discriminação dos judeus praticada pela sociedade romana do final do Mundo Antigo e as demonstrações posteriores de intolerância antissemita sob a Alemanha nazista.” (Gilvan Ventura da Silva).
“O antissemitismo cristão distinguiu-se de todas as outras perspectivas pela duração de uma mentira que se serviu da imagem de um Deus da caridade para professar uma desumanidade. Uma desumanidade ainda mais obstinada pelo fato de se acreditar portadora de uma palavra revelada. É certo que, sem totalitarismo, o cristianismo teria desaparecido. Resta saber se sua sobrevivência não ficou manchada justamente por seu totalitarismo.” (Gilvan Ventura da Silva).
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Mesmo sem querer fazer dos judeus os coitadinhos da história, até porque esse lugar pertence ao cristianismo com as suas ridiculamente alegadas perseguições perversas perpetradas pelos romanos aos seus mártires, do tipo cine terror, cabe perguntar: onde estava o amor ao próximo quando os cristãos fizeram dos judeus assassinos do Cristo, o Salvador da humanidade, para que fossem para sempre odiados pelo mundo?
“Para o estabelecimento dessa tradição “antissemita” no final do Mundo Antigo, considera-se imprescindível a atuação de João Crisóstomo por meio da sua série de homilias Adversus Iudaeos pronunciadas entre 386 e 387. Assim é que, segundo Poliakov (1979, p. 22), Gregório de Nissa e João Crisóstomo, ao lançarem inúmeros opróbrios contra os judeus de seu tempo, reforçarão uma corrente bizantina de antissemitismo que se prolongará por mais de um milênio. O mesmo raciocínio é compartilhado por Johnson (1995, p. 174) para quem, com João Crisóstomo, *um antissemitismo cristão que identificava os judeus como os assassinos de Cristo uniu-se ao antigo repertório de boatos e calúnias pagãs, reforçando-os. Por outro lado, verificamos, em alguns casos, uma tendência dos autores em simplificar o problema, tratando da discriminação sofrida pelos judeus no Império Romano como um comportamento próprio da elite eclesiástica e das autoridades imperiais, receosas das relações cordiais mantidas entre judeus e cristãos, única explicação plausível para a agressividade contida nos sermões de João Crisóstomo (PARKES, 1934, p. 164).” (Gilvan Ventura da Silva)
Salivando bílis, muitos nem conseguirão responder. Por outro lado, a esmagadora maioria da cristandade de bom coração terá a oportunidade de refletir a respeito de questões fundamentais que intimamente já se fez.
Referências
HARPUR, Tom. O Cristo dos Pagãos: a Sabedoria Antiga e o Significado Espiritual da Bíblia e da história de Jesus. São Paulo: Pensamento. 2008.
PAGELS, Elaine. Os Evangelhos gnósticos. São Paulo: Cultrix, 1995.
Ao longo da história, a fundação de poucas cidades desempenhou um papel tão significativo para os séculos posteriores quanto Constantinopla, a capital do Império Romano do Oriente situada na margem ocidental do Bósforo, sobre um promontório servido a norte por uma magnífica baía, curva como uma foice ou um chifre, de cerca de onze quilômetros de extensão conhecida como o Chifre de Ouro. A criação de Constantinopla se deu a partir da reconstrução da cidade de Bizâncio, fundada provavelmente em meados do século VII a.C. por colonos oriundos da polis de Mégara, os mesmos que alguns anos antes haviam se estabelecido em Calcedônia, do outro lado do Bósforo. O controle da rota do trigo proveniente da Trácia e que era escoado por intermédio do Ponto Euxino conferiu a Bizâncio uma posição estratégica no contexto do mundo grego, razão pela qual a sua conquista por Alexandre representou uma etapa preliminar fundamental para a construção da Oikoumene alexandrina.
Prezada leitora,
Gostaria de responder ao seu comentário, no entanto, não percebi motivo da transcrição..
“O conflito entre o cristianismo e o judaísmo que irrompe no Império Romano é amiúde interpretado pelos especialistas a partir de duas perspectivas. A primeira delas, voltada para uma compreensão global da intolerância contra os judeus ao longo da história, tende a atribuir aos autores cristãos, em especial aos Padres da Igreja, a responsabilidade pela intensificação de um antigo preconceito nutrido pelos pagãos contra os judeus, ao mesmo tempo em que se apropriam de toda a herança veterotestamentária, fazendo dos cristãos o novo povo eleito. Desde a Antiguidade teria se constituído, assim, uma corrente de pensamento antissemita, fruto da intolerância e da incompreensão dos cristãos para com o judaísmo que iria desembocar nas experiências totalitárias contemporâneas. Para Ruether (1974, p. 246 e ss.), por exemplo, haveria uma certa continuidade entre a discriminação dos judeus praticada pela sociedade romana do final do Mundo Antigo e as demonstrações posteriores de intolerância antissemita sob a Alemanha nazista.” (Gilvan Ventura da Silva).