AH BOWAKAWA POUSSÉ, POUSSÉDébora Gimenes / Debby Lenon


Baseado na musica #9 Dream

O quarto ainda estava escuro. Apesar de ter dormido a noite toda, ainda estava com muito sono. Um vulto apareceu entre o vão da porta, ficou me observando por alguns segundos e depois sumiu entre passos pesados. Não tive medo, sabia quem era. Pelo calor que fazia no quarto já devia ser perto de meio dia. Não me importava, virei para o outro lado e puxei o edredon para que minha cabeça ficasse coberta. Em posição fetal, deixei-me levar pela dor que sentia e lágrimas começaram a rolar sobre minha face molhando minha camisola e a fronha do meu travesseiro.

Batidas na porta.

– Me deixa em paz! – ordenei.

– Amanda, você precisa comer – disse minha mãe com sua voz doce e preocupada. – Meu amor, você tem que superar isso, já tem uma semana que você sequer sai desse quarto.

– Me deixa em paz! – gritei, dessa vez me enrolando ainda mais no edredon.

Vendo que não conseguiria nada, minha mãe desceu as escadas e com uma voz melancólica informou aos que estavam na casa que eu não queria comer e nem sair do quarto. Então minha melhor amiga subiu as escadas, naquele momento não queria saber das minhas amigas, nem dos meus cães. Só queria chorar, queria saber por que ele havia partido.

– Amanda? – Minha amiga me chamava. – Amanda? Eu sei que você não está dormindo. Você precisa sair dessa, amiga. Todos nós estamos sofrendo com a partida dele. Ele era nosso amigo também.

– Denise, vai embora. Quero ficar sozinha, já que não posso morrer também – desabafei.

– Continue agindo dessa forma, Amanda, que com certeza em breve você morrerá. Amiga, você está sendo egoísta com as pessoas que te amam. Você tem dezesseis anos, começou a viver agora, o Eduardo era seu primeiro namorado e vocês estavam juntos há quatro meses. Olha o que você está fazendo com seus pais! Sua avó está adoecendo de ver você assim. Por favor, deixe que nós, seus amigos, te ajudemos a superar essa perda.

– Como você vai me ajudar, Denise? – perguntei

– Venha passar o fim de semana em casa e eu te mostrarei.

– Não sei, não quero sair do meu quarto.

– Por favor!

– Está bem! Quem sabe vocês me deixam em paz depois de fracassarem.

– Obrigada amiga, vou buscar um lanchinho para você enquanto você toma banho e se arruma.

– Não quero comer…

– Vai comer sim, nem que seja um pouquinho.

Meus pais nunca gostaram que eu dormisse fora de casa, porém, naquela apatia em que me encontrava, concordaram com Denise e permitiram que eu fosse dormir na casa dela.

Denise passava as noites de sábado sozinha ou na casa de amigas. Seus pais tinham o habito de saírem para jantar e depois dançar. Sempre encerravam a noite num motel vagabundo a duas quadras da nossa rua. Diziam que era para lembrar os tempos de namoro e não deixar a rotina acabar com o casamento. Minha mãe nunca aprovou isso, mas acho que ela tinha inveja.

Cheguei com Denise por volta das seis horas da tarde. Ela levou-me até o quarto e colocou o CD dos Beatles para tocar. Os pais de Denise eram fãs da banda e tinham todos os CDs do grupo e também da carreira solo de cada um. A mãe de Denise ainda colecionava os CDs do Julian Lennon. Foi por causa dos pais da minha amiga que comecei a gostar do John Lennon.

– Amanda, você quer ver o que eu achei no quarto da mamãe? – Denise me olhava como se estivesse escondendo um grande tesouro.

– O que você pegou dela agora, Denise? Ela já não te disse que não queria você fuçando o quarto dela?

Sem animo para as brincadeiras de Denise, deitei na cama. Ela jogou um livro pesado em cima de mim. Senti uma dor enorme no abdome. Ia jogar o livro de volta para ela quando o título me chamou a atenção. Kamasutra.

– Denise!!!! – Falei espantada. – Você achou esse livro? Procuramos tanto por ele ano passado! Você já o xeretou todo?

– Na realidade, eu achei hoje. Ainda não tive tempo de olhar. Vamos fazer isso juntas.

Ficamos por uma hora inteira olhando as gravuras do livro, as posições em que os modelos estavam, as explicações de como o homem sentia mais prazer. Depois as posições que davam mais prazer à mulher. Eu e Denise já estávamos craque na teoria, foi quando ela me fez uma revelação.

– Eu e o Batata transamos no dia em que Eduardo morreu.

– Denise… Você transou com meu primo enquanto o meu namorado morria entre as ferragens daquele carro?

– Claro que não. Nós transamos no estacionamento da danceteria. Antes mesmo de Eduardo ir embora. Depois ainda ficamos acalmando ele.

– Você perdeu sua virgindade num estacionamento? Sempre achei que você fosse romântica e que ia querer que sua primeira vez fosse algo inesquecível.

– Não foi minha primeira vez. Seu primo e eu transamos antes. Há dois meses, na festa de quinze anos de Gabriela. Foi bem dolorido por sinal.

– Amiga, a festa de Gabriela foi no salão da igreja e…

– Transamos dentro da igreja. Aliás, na sacristia.

– Chega! Prefiro não ouvir mais nada.

– Deixa de ser pudica, Amanda! Você mesma me contou que estava pensando em transar com o Eduardo.

– Estava. Naquela noite. Se não fosse meu irmão chegar e me arrancar da danceteria… Eu provavelmente estaria no banco de trás do carro dele e ele não estaria morto.

Comecei a chorar novamente, as lembranças eram muito forte. Denise tentou me acalmar, porém, não conseguiu. Foi então que ela apareceu com um pó branco. Pegou a mesinha de servir café na cama e preparou três carreiras para mim. Tirou um canudo da gaveta e cortou um pedaço de uns cinco centímetros.

– Amanda, use isso. Vai te acalmar.

– Não. Isso é cocaína?

– É sim. Seu primo me trouxe. Alias, não foi só em sexo que seu primo me iniciou, não. Cocaína e também em sessões espíritas. Vamos fazer uma sessão hoje para tentar falar com Eduardo.

– Eu não acredito nisso. Você sabe.

– Então, se der certo você passará a acreditar. Agora cheire essas carreiras para se acalmar, logo o Batata, a Alice e o Thiago estarão aqui.

O pior que poderia me acontecer era ter uma overdose e a morte era o que eu andava almejando mesmo. Aquele pó nas minhas narinas começou a arder e me senti um pouco zonza. Ainda ouvia a musica, mas parecia que estava numa outra realidade. Escutei a campainha tocar. Denise foi abrir a porta e nossos amigos entraram.

Batata era um jovem alto, um pouco gordo, alegre e bonito. Éramos primos de segundo grau e não tínhamos muita amizade, pois meus pais nunca aprovaram seu jeito de ser.

Alice era a garota mais popular da escola, tinha dezesseis anos e saía com uns caras bem mais velhos do grupo de jovens da igreja. Andava sempre na moda, com roupas e sapatos de marca, maquiagem bem feita e perfumes importados. Escutei meu irmão dizer para o Batata que já havia transado com Alice. Ela negava e eu acreditava nela.

Thiago era atualmente o “ficante” de Alice. O típico cara de academia, bombado, barriga de tanquinho e burro. Incapaz de distinguir uma arara azul de um periquito. São todos pássaros, dizia ele.

Alice segurava uma sacola com refrigerantes, Thiago trazia cervejas e Batata três pizzas. Entre a falação alta, cumprimentos e risos, meu primo percebeu que eu não estava normal.

– Prima, você está “xapada”? O que você bebeu?

– Ela não bebeu nada, Batata. Foi só uma cheiradinha de leve no pó que você me trouxe essa semana.

– Denise, você está maluca? Se o irmão dela aparece aqui…

– O Cláudio não vai aparecer, Batata, eu pedi para a tia dar um jeito nele. Essa noite é só para distrair minha amiga. Pelo menos ela parou de chorar.

– Que seja!

Eu não percebia o tempo passar, eles comeram a pizza e começaram a beber. Eu sentia um gosto estranho na boca e parecia que minhas gengivas estavam anestesiadas. Peguei uma latinha de cerveja e virei de uma única vez. Thiago começou a rir. De repente senti um interesse físico por ele, devia ser a cocaína e a bebida. Nunca tinha achado homens como ele bonitos. Fizemos a sessão espírita e, tirando os gemidos (feitos por Batata e Thiago), nada foi ouvido.

Adormeci no sofá. Sonhei com Eduardo. Caminhávamos pela rua abaixo e era uma rua diferente da minha. Havia muitas arvores e elas pareciam sussurrar meu nome, olhava para Eduardo que sorria para mim. Eu lhe dizia: “Meu amor, parece que elas me chamam.” E ele apenas ria. Uma chuva fina caía, congelando meu rosto, mas as mãos quentes de Eduardo seguravam as minhas e eu me sentia aquecida. Escutei meu nome (Amanda) como sussurrado pelas árvores. (Amanda) e a chuva aumentou deixando-me encharcada. Eduardo parecia não se molhar.

Ao longe, avistei dois espíritos bailando estranhamente. Pareciam felizes e diziam algo que não compreendia, devia ser uma língua mágica. Ah! Bowakawa poussé, poussé. Repetiam o tempo inteiro, como querendo que eu os respondesse. Havia muita magia no ar e eu acreditava nisso. Comecei a gritar para que parassem. Eu acredito em vocês, acredito. Não sei o que dizer para provar isso a vocês. Eduardo segurava minha mão com força e não soltava. Vozes altas começaram a me chamar e eu sentia mãos me arrancando de Eduardo. Conforme as vozes chamavam por mim, meu amor ficava cada vez mais distante até que nos separamos e ele sumiu.

Acordei com o Batata me chamando.

– Amanda! Porra meu, você me assustou. Achei que você estivesse em coma.

– Batata? Ah! Eu estava sonhando… Porque você me acordou? Eu quero voltar a sonhar de novo.

– Você está se sentindo bem? Sua mãe ligou para cá, queria saber como você estava. Denise disse que você estava dormindo, mas que estava melhor. Eles estão vindo te buscar.

– Que horas são?

– Nove da manhã.

Meus pais apareceram meia hora depois, estava terminado de arrumar as coisas e meu primo ficou escondido no quarto de Denise. Thiago e Alice provavelmente estavam no quarto ao lado, pois não os vi depois da sessão.

Minha vida começou a entrar nos eixos, eu acabei culpando a cocaína e John Lennon pelo sonho. Os dias passaram e continuava com minha vida, não sorria mais, estava sempre apática e nem meus livros me distraíam. Um dia meus pais e meu irmão foram a um casamento e pedi para que eles me deixassem ficar em casa. Minha mãe entendia meu sofrimento, afinal, só havia se passado dois meses. Concordaram comigo e saíram prometendo não demorar.

Liguei meu mp3, peguei o livro que havia ganhado dos pais de Eduardo no meu aniversário. Um romance espírita que contava a história de um amor que vencia a barreira do tempo. #9 Dream começava a tocar. Levantei e fui até minha escrivaninha, olhei o espelho que meu pai havia afixado na parede quando reformamos meu quarto. Peguei a cocaína que havia escondido dentro do meu Ursinho de Pelúcia e cheirei uma, duas, três carreiras…

Através do espelho via o mundo girando. Ah! Bowakawa poussé, poussé. Eram os espíritos me chamando, não era sonho, era realidade…

…Quatro, cinco, seis carreiras. Sentia a presença de Eduardo e através do espelho eu via minha rua, as árvores balançando com um vento quente, as mãos de Eduardo me chamavam para dentro do espelho. Só mais uma, meu amor, a última carreira e vou te encontrar.

Ah! Bowakawa poussé, poussé.  Eram os espíritos bailando e cantando uma linda melodia que tocava minha alma, era tudo tão cálido e frio… Os espíritos estavam dançando… Sinto a magia, sinto as mãos de Eduardo tocarem meu corpo, ele me despia e beijava-me e seus lábios tocavam os meus, seu corpo nu e quente tocava o meu corpo, a chuva fina caía e eu não me molhava. Deitados sobre a grama agora Eduardo me amava como nunca antes fora amada.

Nossos espíritos dançavam a melodia, dançavam por entre as árvores, todos chamavam meu nome e eu ria feliz. Estava novamente vivendo um lindo sonho e eu acreditava naquela magia que havia no ar.

Através do espelho agora eu via meus pais gritarem por mim. Minha mãe chorava sobre um corpo caído no chão do que parecia ser meu quarto. Não conseguia ver aquele rosto e distinguir quem era. Olhei para Eduardo que, com um sorriso nos lábios, me disse:

– Ah! Bowakawa poussé, poussé.

Eu finalmente compreendi aquelas palavras.

 Débora Gimenes/Debby Lenon estudou letras e é escritora

 

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