Tarde fria e chuvosa. Densas nuvens cinzentas acumulam-se no horizonte de minha cidade natal, Novo-Horizonte/SP, ameaçando pancadas de chuva. O vento suave como a brisa, entoando nas ramagens das árvores e nas frinchas das venezianas a melancólica canção da tristeza e da saudade.
Postado atrás da vidraça da casa tristonha e silenciosa, ouvia-se o tamborilar da chuva nas calhas do telhado enegrecido pela espessa camada de musgo, e o ribombar do trovão que se perde como mugido na vastidão ilimitada. É a mística sinfonia da natureza a envolver a nossa infância feliz e despreocupada, quando em tardes semelhantes, com as pernitas desnudas, brincava-se ruidosamente, afundando os pés nas enxurradas tumultuosas.
Sou levado pela música adormecedora, refluindo as imagens do passado que não volta mais, e, como a gota que escorre pela vidraça que oculta, uma lágrima que deslizava pela face. Julgo-me a violar um mundo de esquecimento e saudade, a ressuscitar personagens que há muito completaram o ciclo de sua existência, a reviver fases pela redoma sagrada dos anos acumulados.
Lá fora, a chuva continua a cair, cantando nos beirais do telhado e no silêncio da cidade…
Por longos instantes… Pensava comigo mesmo:
– De todas as árvores de minha cidade, que tanto amei na minha infância, uma se destaca pelo traço marcante da superstição e do receio que sempre me infundiu. Erguia-se ela em terreno inclinado cujo vértice terminava na tortuosa e solitária estrada que demandava o cemitério de Novo-Horizonte. O chão avermelhado que a circundava encontrava-se sempre recoberto por espessa camada de capim nativo que, com suas compridas folhas, atapetava de um imaculado verde-escuro a gleba toda.
À esquerda, o monte que dominava com seus poderosos contornos e cenário rústico daquela região, enquanto mais próximo, à direita, o campanário da velha igreja, emergindo dentre os tufos da vegetação, estabelecia o flagrante contraste do amarelo desbotado de sua antiga alvenaria com a intensa tonalidade verde das árvores circundantes.
Ao sul, bem acima da igreja, a campina se alastrava, quebrando-lhe a monótona uniformidade montículos de grama, criados ao longe pela mancha escura de um cerrado que se estendia a perder de vista.
A árvore das assombrações – como a chamavam em minha cidade – destacava-se no conjunto agreste pela tortuosidade de seu tronco, pela forma bizarra de sua copa cuja galhardia desordenada desbraçava-se em todas as direções e pelo permanente revestimento de folhas onde os raios solares jamais penetraram.
O tronco enorme e retorcido, apresentava-se sempre envolvido por grossa casca embolorada pela excessiva umidade e, em suas reentrâncias, insetos de toda a espécie e negras lagartixas encontravam o seguro refúgio. De um lado do tronco, na base de um galho que ali existira e que talvez fora, em épocas distantes, decepado pela fúria dos vendavais, formara-se profunda cavidade onde se represava a água das chuvas, permitindo proliferação de rãs.
Em dias escuros e chuvosos o trovão ribombava surdamente nos horizontes e a chuva coava-se pelos labirintos da densa camada de folhas, escorrendo pelas nodosidades da árvore, esses pequenos e feios animais iniciavam sua tremenda sinfonia de berros que se ouvia à grande distância, ecoando pela cidade.
Corriam estranhas histórias a respeito dessa árvore.
Os campeiros, que tangiam o gado bravio desde as furnas inacessíveis daquela desolada região, afirmava que viram, muitas vezes, em lindas noites de lua cheia, estranhos vultos se reunirem à sombra da árvore misteriosa. Diziam com uma seriedade que impressionava, que se tratava de fantasmas vindos através dos vestutos paredões do longíquo cemitério, atraídos pela alma de um viandante desconhecido que falecera, há muitos anos, sobre as recurvas raízes do solitário vegetal.
– Eu ouvia essas lendas, dando-lhe um cunho de absoluta autenticidade – pensava.
Acreditava plenamente nos horripilantes relatos e eles povoavam os pensamentos de Em meus pensamentos de um menino sonhador, fazendo com que seus receios pela árvore aumentassem ainda mais.
– Não obstante, eu amava a velha árvore – pensava.
Amava-a, vendo-a assim, de longe, porque ela proporcionava a fascínio incoercível dos mistérios indevassáveis. Nas noites escuras, quando o vento rugia varrendo a grimpa do monte e a vastidão das campinas distante, o pensamento dirigia-se para a árvore amedrontadora, vendo-lhe, na imaginação, a galhardia retorcida ao rude embate dos elementos em fúria. Temia que, na manhã seguinte, ela se apresentasse destruída desde as raízes pela força do vendaval impetuoso.
Mas, quando a rutilante manhã se apresentava, afugentadas que eram as nuvens da tormenta noturna, Eu sorria, satisfeito ao ver que nada lhe acontecera.
Lá estava ela, como sempre, a ostentar na limpidez do amanhecer radioso a imponência de seus contornos impressionantes.
– Lembro-me que, numa noite de lua cheia, organizamos um numeroso grupo de garotos e nos dirigimos para a porteira, pouco além da casa em que nasci. Desse lugar divisar o vasto prado onde se erguia a árvore assombrada.
Instalaram no alto da porteira, olhando atentamente a extensa e silenciosa região que se estendia pela cidade. Não foi difícil localizar ao longe o vulto escuro da árvore, porém suas formas apresentavam imprecisas sob a pálida claridade lunar. Por largo tempo quedaram imóveis, absortos em muda contemplação do cenário fascinante. O canto nostálgico dos curiangos fazia-se ouvir ao longe e era a única nota a romper o profundo silêncio que reinava.
De súbito, como que surgindo dos mais distantes recantos da cidade, vários vultos esbranquiçados e de formas não bem delineadas em virtude da distância que os separava, começaram a atravessar as alfombras enluaradas convergindo para o estranho vegetal.
Diante disso, só restava o recurso de uma desabalada fuga em direção as nossas casas.
Recordo-me bem daquela longínqua manhã de julho quando, em companhia de meus pais e meus irmãos, partimos de mudança desta hospitaleira Novo-Horizonte para capital de São Paulo.
Antes fui me despedir da velha árvore.
Sozinho, subi o alto do moirão da porteira e dessa posição olhei longamente o enorme e solitário vegetal que tanto assustava os meninos de Novo-Horizonte.
Procurava com isso fixar mais e mais em minha memória a imagem da árvore cercada de mistério, sentido, desde então, que ela constituiria, através dos anos, um marco inolvidável da minha infância e da minha terra natal.
O tempo passou. Quase quarenta anos decorrem desde o dia em que fui me despedir da velha árvore. Circunstâncias impediram-se de rever antes o meu torrão natal.
Mas, quando há poucos dias, premido pela saudade avassaladora, fui rever a terra onde nasci, procurei ansiosamente a sinistra árvore dos fantasmas.
Mas não mais a encontrei. O tempo, o mesmo tempo que banira da minha mente o encanto das superstições infantis, destruirá também o motivo das minhas longínquas e saudosas preocupações.
A árvore já não existe! E com ela desaparecem os seus fantasmas.
Lentamente o sol descamba ao acaso.
Avermelha-se o ocidente aos últimos lampejos da grande lâmpada. Depois esmaecem as tonalidades vivas.
Anoitece…
Tudo é silêncio, e a natureza queda em profunda letargia.
Sob a fronde de vetusta árvore procuro abrigo, fugindo à inclemência da soalheira terrível. Ergue-se o imponente vegetal no alto de uma colina da qual descortino magnífico e vasto panorama. A transição entre a canícula desfibradora e doce refrigério da sobra amiga, é rápida. Sinto o seu efeito e posso haurir, a plenos pulmões, o ar fresco que me proporciona profundo bem estar.
Gosto de fugir, nos intervalos que roubo às minhas constantes atividades, ao bulício da vida citadina, para encontrar no silêncio do campo e na vastidão do cenário que a natureza nos proporciona, as condições de que necessito para um pouco de descanso espiritual.
Da posição em que me encontro, espreito as dilatadas distâncias, mergulhadas nas profundas ondas da ofuscante luz solar, e recolho do cenário imenso, múltiplas imagens.
Tudo é silêncio, e a natureza queda em profunda letargia.
Um céu de bronze, onde o sol rutilante navega lentamente, atirando sobre a face enrugada da terra calcinada os seus raios de fogo. Cobre a paisagem, envolvendo tudo num quadro de lassidão e inércia acabrunhadoras. Até os pássaros, cantores suaves dos campos ensolarados, desaparecem no recesso da mata escura, cuja oria descortino ao longe, margeando o curso sinuoso do rio. A infinita sucessão de colinas perde-se na distância, como réstea azulada na fímbria do horizonte dilatado. Penso nas primitivas eras do nosso globo, quando a natureza, em convulsões ciclópicas, enrugando a superfície da Terra e criando os seus habitantes, procurava, através de milênios, estabelecer as condições indispensáveis à sua própria existência. E, então, mais do que nunca, tenho a sensação da pequenez do homem ante a incomensurável grandeza do Criador.
Lentamente o sol descamba para ao acaso.
Avermelha-se o ocidente aos últimos lampejos da grande lâmpada. Depois esmaecem as tonalidades vivas. Nos campos solitários, o curiango rompe o hierático silêncio com seu canto nostálgico.
Anoitece…
Nelson Valente é professor universitário, jornalista, escritor e amigo inestimável
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Meu caro amigo Giba, boa noite!
Excelente história, belo conto.
Antigamente tínhamos muitas histórias e superstições, com o tempo foi acabando… hoje importa muito a realidade.
Parabéns pela excelente postagem!
Abraços e muita luz!!!
A minha árvore preferida, por ser como a sua, enigmatica e assustadora ao mesmo tempo, é a baobá – árvore nacional de Madagascar e o emblema nacional do Senegal – e que no norte de minas (Jaíba, Manga e tal) tem aos montes! Ela é incrível! Elas têm a fama de terem vários e milhares de anos, mas como a sua madeira não produz anéis de crescimento,fica impossivel saber.Na história O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry, o menino narra uma história…
Mas voltemos a você: conto, cheio de saudade, e marcante com a frase "Tudo é silêncio, e a natureza queda em profunda letargia". Gostei da associação; arvore, passado, saudade, raizes.
Mas Giba, ela foi arrancada e no seu lugar um cimento ou algo tomou outra forma. E as suas raízes, ficaram fincadas lá, tanto que vc voltou…