Conta-se uma história, que um certo dia, numa manhã ensolarada, um pássaro aparecera em uma fazenda na minha querida cidade natal, Novo-Horizonte/SP

Era pequeno e, ao invés da característica plumagem negra de urubu, apresentava-se com o corpo revestido por leve penugem branca, o que lhe dava um aspecto feio e grotesco.Seu aparecimento provocou intenso alvoroço, entre os moradores. Santiago agarrou-o, acolheu-o carinhosamente, levou-o para casa, deu-lhe alimentos e, num gesto que bem demonstra a sensibilidade de seu coração, trouxe para a cidade.

À medida que o tempo passava, crescia o pequeno pássaro transviado, aumentando na mesma proporção o afeto recíproco entre Santiago e o sulcador majestoso dos espaços azuis.

A primitiva penugem branca fora substituída pelo sombrio e imaculado colorido negro; o bico de ave carnívora delineava pouco a pouco os seus poderosos contornos a procura do alimento preferido.

Em estranha e singela cerimônia, Santiago deu-lhe o nome de Sombra, gravando-o em pequena chapa de reluzente metal que lhe foi amarrado à perna direita.

E desde então, o negro pássaro constitui-se alvo de todas as atenções. Manso e obediente às ordens de seu senhor, enchia a casa toda com o rufar de suas enormes asas; quebrava o silêncio com o seu crocitar característico, afugentava os gatos do telhado, investindo, de outro lado, contra os representantes da raça canina que, furtivamente, procuravam virar as latas que encontravam no fundo do quintal…

Sob o abrigo seguro de seu humano protetor, dormia encolhido no recanto isolado de uma dependência existente numa extremidade da casa. Acordava aos primeiros albores da manhã, estirava as asas num genuíno espreguiçamento matinal e, com passos lentos e desengonçados, caminhava pela casa toda, a espera da primeira refeição, que não faltaria.

Depois, talvez cedendo aos impulsos do instinto, erguia vôo, desaparecendo na linha azul do horizonte.

Quiçá encontraria nessas viagens, lá ao longe, no recesso da mata silenciosa ou no cume de uma rocha alcantilada, a doce companheira que, arisca e desconfiada, recusava-se a segui-lo, não acreditando na bondade dos homens.

Horas depois regressava, anunciando ruidosamente sua chegada. Santiago esperava-o sempre, oferecendo-lhe como de hábito, suculentos nacos de carne que Sombra devorava em poucos instantes.

Mas, a maldade humana – certa feita, quando pousara em plena clareira no centro da cidade, garotos travessos o agarraram brutalmente fraturando-lhe uma asa. Santiago, prevendo o desastre, correu apressadamente, levando para a casa o urubu ferido. Prodigalizou-lhe todos os cuidados, recorrendo mesmo à competência de conhecido médico da cidade para salvar o pássaro que tanto estimava. Mas a terrível fratura exposta não deixava dúvidas sobre o intenso sofrimento e próximo fim da infeliz ave. Santiago não poderia suportar a lenta agonia do pobre Sombra. Sem coragem para efetuar o golpe de misericórdia , encarregou seu irmão Cândido para desfechar o tiro decisivo. Este, vacilante e comovido, executou a ordem dolorosa.

O estampido da cápsula ao deflagrar-se ecoou tristemente pela casa repercutindo em todas as dependências.

O negro pássaro agitou pela última vez suas imensas asas, como derradeiro agradecimento ao seu benfeitor, quebrando-se depois na eterna imobilidade da morte.

Santiago sentiu um nó na garganta e,no soluço que brotou do coração bem formado consubstanciava-se toda a afeição que, de modo singular, dedicava ao pobre ser alado que certa manhã aparecera na cidade de Novo-Horizonte/SP, provocando intenso alvoroço!…

 

A crônica foi a vencedora por mais de um ano na Rádio Bandeirantes. Imbatível !

Esta crônica pode ser ouvida no link abaixo:

Sulcador Majestoso  dos espaços azuis

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Clique aqui e leia artigos de Nelson Valente
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10 thoughts on “Crônica: O Sulcador Majestoso dos Espaços Azuis

  1. Nelson Valente says:

    Prezado amigo Ivani,

    a história foi contada na Bandeirantes. É de minha autoria.

    Abraços,

  2. Nelson Valente says:

    Fico-lhes grato pelos comentários a respeito dessa crônica, que é verdadeira e aconteceu em minha cidade natal, Novo-Horizonte/SP.

  3. Paulo says:

    Certa feita, há alguns anos atrás, visitei uma fazendola no interior de SP (região de Bauru). O caçula da família, um meninote de uns6 anos sismou de ter um urubu no quintal de casa. Dito e feito. Tenho umas imagens daquela época com o dito urubu, que não aceitava carinho de ninguém a não ser do menino… ótima crônica.

  4. Ivani Medina says:

    A história eu já conhecia da televisão. Não sei se existem outras parecidas, mas o trágico desfecho é novidade para mim. Belo texto. Parbéns ao autor.

  5. Guardiões da Luz says:

    Saudações.
    Somos gratos mais uma vez ao Professor Nelson Valente por suas grandiosas contribuições culturais.
    Salve Professor nosso amigo e admirável escritor.
    Nossa legítima escolha para uma cadeira no legislativo municipal paulistano.
    Tomamos a liberdade de compartilhar.
    Grato.
    Guardiões da Luz.

  6. Rose says:

    Giba,podemos observar que além de uma história real, segundo o autor, trata-se de uma metáfora da vida cotidiana, discute-se se o ser humano, por sua capacidade altamente desenvolvida de interferir e transformar a natureza, não poderia também interferir na própria evolução humana. Nesse caso, poderíamos falar numa evolução social que interferiria na evolução natural ou biológica.
    Digamos assim :
    Para realizar e atender a metáfora psíquica de mudar o mundo, na busca de uma ilusória completude para suas vidas, os humanos violam e destroem os elementos da natureza, o cao homem é fera, mau, desprovido de conteúdos de humanidade; o animal é, por sua vez, antropomorfizado, humanizado, bom.
    Essa dualidade é que compõe essa linda crônica de Nelson, parabéns !
    Abraços fraternos
    Rose@

  7. Irene Santana says:

    Senhor Giba,

    é a primeira vez na vida que senti-me comovida com uma crônica e a respeito de um urubu. Minha família também ouviu e minha mãe e meu pai choraram copiosamente. Não me canso de ouvir. Ganhei o dia.

    Fique com Deus ! Obrigada por está maravilhosa crônica

    Irene Santana

  8. Anonymous says:

    Inigualável ! Lindíssima ! Inquestionável ! Parabéns, senhor Giba, a oportunidade de estar lendo ouvindo crônicas que me fez chorar !

    Paulo Figueiredo

  9. Marcos Mariano says:

    Nossa que história linda e inuzitada
    um Urubu domesticado bem interessante
    mais essa história é real
    muito boa a cronica

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