Nelson Valente

Para a primeira entrevista exclusiva após o episódio da renúncia, Jânio Quadros recebia os repórteres na sala de jantar do sobradinho em que residia em São Paulo, desde que deixou os Campos Elíseos. Num dos quartos em cima, D. Eloá, por ordem médica, permanecia deitada. O ex-Governador, vestindo um costume escuro razoavelmente alinhado, explicou o atraso de meia hora. Dizia que estivera na casa do Deputado Xaves Amarante, até alta madrugada:

“- Lá se encontravam mais de 50 Deputados, do situacionismo e da oposição da Assembleia.” Foi uma reunião informal de amigos, que serviu para aparar certas arestas…

na sala, modestamente mobiliada, dois quadros de Lincoln. O ex-Governador fez breve referência ao grande estadista americano, que na sua opinião era o maior vulto da política dos Estados Unidos. A entrevista começou naturalmente com o episódio que abalou a Nação por alguns dias.

“- Afinal, por que renunciou?”

Jânio Quadros refletiu uns instantes. Depois, informando que suas palavras se prestariam a uma interpretação “interessante” por parte dos observadores, explicou:

“- Sentia-me como um reservista que já prestou o seu serviço. Quando iniciei as primeiras gestões como candidato à Presidência da República, era um copo cheio; bastaria uma gota para que ele transbordasse.”

“- Afirmou o senhor que havia interesses em choque e que não poderia levar até o fim uma campanha que se iniciava com tantas desinteligências. Como condição do retorno houve modificação nos propósitos e reivindicações dos partidos?”

“- A essa pergunta, costumo responder que já declarei várias vezes, que não preciso necessariamente ser candidato à Presidência.Sinto-me aos 42 anos, satisfeito comigo mesmo e não nego que a atividade política hoje me irrita e cansa, porque ela é a arte da permanente transigência. Quando renunciei, tinha o firme propósito de voltar a vida privada, isto é, à advocacia, ao magistério, à família. Contudo, partidos políticos que me apóiam, governadores de vários Estados, e sobretudo o povo, ratificaram a confiança que em mim haviam depositado. Sem embargo do que afirma determinada imprensa, que timbra em conduzir-me de forma desrespeitosa e, parece, desejosa de transferir a luta sucessório do plano elevado em que me situo, para o das sarjetas, os apelos de trabalhadores – gente humilde e angustiada – chegaram a mim em número incontável. Um verdadeiro oceano de cartas e telegramas alcançou esta casa e a de alguns companheiros. Convencido, afinal, de que se impunha minha presença e de que não se pode chegar ao país e à causa democrática ainda os serviços mais pesados, revi aquela decisão.”

“- Agora, a candidatura é definitiva?”

“- Não desapontarei as esperanças do povo. A qualquer custo irei até 3 de outubro para que os brasileiros possam escolher, dentre os nomes que se apresentem, aqueles que julguem seja o mais apto para este grave instante de nossa pátria.”

“- Corre em certos círculos políticos que o senhor teria perdido o embalo inicial: é certo?”

“- Um homem como eu, nunca faz qualquer coisa de que não esteja absolutamente convicto. Tenho agora a mesma convicção de antes.”

“- Diz-se, também, que seu temperamento estaria sendo alvo de sérios comentários nos meios políticos e militares.”

“- Nasci com este temperamento e morrerei com ele. A mim, agrada, e é o bastante. Não existo para agradar os outros. Vou empenhar-me nesta luta com todas as minhas forças, marcando meus atos com a máxima lealdade e a mais absoluta limpidez e coragem – dizendo apenas o que penso, e atendendo assim, à minha própria consciência.”

“- Quer dizer que na questão Vice, o Sr. Fernando Ferrari vai ficar mesmo falando sozinho nos comícios?”

“- Tenho um companheiro de chapa que é o Sr. Leandro Maciel. Entenderam os partidos que me apóiam que o Deputado Ferrari disputará o pleito sustentado somente pelo PDC. Em consequência não participarei de quaisquer combinações que contornem o compromisso que assumi. Se me permitem, afirmarei que a primeira condição que se reclama de um candidato à Presidência da República é o respeito à própria palavra.”

“- Aquela disposição do Governador Juracy Magalhães, manifestada ao Sr. Leandro Maciel, de emprestar todo o apoio à sua candidatura na Bahia e Estados do Nordeste, perdura?”

“- Nunca duvidei da presença do Governador baiano, cujas responsabilidades no Nordeste e perante a Nação, somente serão aumentadas no futuro Governo. Confio que me ajudará adivinhando o peso do fardo.”

“- Continua considerando-se o candidato marcadamente da oposição?”

“- Sou o candidato da contrariedade, da inconformidade, da angústia popular. Em um dos lados estará o candidato situacionista, e eu de outro. Contudo, reitero o que já declarei em outra oportunidade. Proponho-me a uma campanha em termos altos, mas aceito-a em quaisquer termos. Somente não darei o início. Não assumirei a responsabilidade dos métodos e processos que a afastem do plano em que pretendo situá-la.”

Durante a entrevista, por várias vezes, um dos secretários do ex-Governador aparecia para chamá-lo ao telefone. Ele sempre se negava, avisando que o procurassem no Comitê Estadual, instalado na Rua Consolação. Em seguida, era D. Eloá quem o chamava. Jânio Quadros demonstrava contrariedade e respondia:

“- Já lhe disse, meu bem, que você não ode levantar-se sob nenhuma hipótese. Ouviu bem o que o médico disse.”

“- Alguns jornais e mesmo boa parte dos políticos, afirmam que sua popularidade sofreu um arranhão com o episódio da renúncia. Quem esteve no Aeroporto Santos Dumont (Rio), na semana passada, e viu a relativa frieza com que foi recebido, comentou o fato dando-o como prova do que afirmam.”

“- Para que essas sondagens da opinião pública? Ontem fui almoçar no Cais do Porto do Rio e estivadores e doqueiros, operários de todas as categorias, me envolveram em carinhosa e vibrante manifestação. Domingo passado visitei sozinho o bairro da Vila Maria em São Paulo, e o bairro inteiro me testemunhou a sua calorosa amizade. Isso sucede por toda parte. Pareço massa de bolo, quanto mais batida mais cresce.”

“- Quais os Estados que considera mais ‘difíceis’ para sua campanha?”

“- Alguns Estados merecerão cuidados especiais que decorrem de várias circunstâncias. Exemplifico: quero conhecer bem as condições econômicas e sociais do Norte e Nordeste, examinando com vagar as suas questões mais sérias. Desejo familiarizar-me com os problemas de Minas, concorrendo ainda, com todos os meus recursos, para a eleição do Sr. Magalhães Pinto. Vou estender, o possível a minha permanência no Sul, particularmente no Rio Grande. Não sei de Estados ‘difíceis’ sob o ponto de vista eleitoral, mas de Estados que exigem do candidato mais tempo, e uma ação pessoal mais intensa.”

“- Por que vai iniciar a campanha pelo Acre?”

“- Minha ida ao Acre tem intenção de significar o interesse que me desperta aquele e outros territórios federais. Subirei depois ao Maranhão, Piauí, visitando a seguir Campina Grande, verdadeira capital do sertão nordestino. É possível que aproveite a viagem para chegar ao Recife e Salvador, sem o propósito, porém, de comícios nessas duas grandes cidades. Do Recife, tenho um programa radiofônico já transferido por motivos de força maior. Na Bahia quero visitar as instalações da Petrobrás, que não revejo desde os tempos em que fui Vereador.”

“- Como Deputado Federal pelo Paraná, como vê as manifestações de revolta do povo de Curitiba?”

“- Ainda ontem, enviei mensagem ao povo curitibano apelando para as tradições de acatamento e respeito à ordem. Os fatos que se desenrolaram, são ainda mais graves, dada a índole pacífica daquela gente. Como explicá-lo, exceto através do desespero que eclode por toda parte? Não há quem não viva hoje sob tensão nervosa, que decorre das dificuldades de cada dia e da insegurança do futuro. Quando se sabe que apenas em um mês foram emitidos cerca de 5 bilhões de cruzeiros, quando se acompanha a terrível alta do custo da vida, que é filha dileta, em todo o mundo, do avilamento da moeda, quando os escândalos se multiplicam, na impunidade, então as explosões da cólera coletiva encontram sua interpretação legítima. Várias advertências de economistas, sociólogos, políticos e cidadãos de rara experiência e autoridade moral caíram no vazio. Agora as multidões erguem sua voz, e Curitiba é, afinal, apenas uma dessas vozes alarmantes. Não é causa, mas efeito. Que se acautelem os responsáveis.”

“- Que diz da rebelião de Aragarças?”

“- Já condenei esse movimento sedicioso, mas condeno com mais vigor aqueles que o determinaram, levando a sedição bravos militares. Não residem, porém, nas instituições os males do momento, mas em uns poucos que detêm o poder. O que cumpre a todos nós, é procurar o aperfeiçoamento do regime, o que se consegue, embora à custa de erros e sacrifícios, pelo exercício do voto livre. Na minha opinião vem sendo rápido o processo da politização brasileira. Todas as grandes democracias passaram por esta fase, quase decepcionante, e delas saíram melhores pela continuidade das próprias instituições. Reitero minha confiança no futuro.”

“- Circulou a notícia de que o ‘comando revolucionário’ teria entrado em contato com o senhor, e feito a entrega do manifesto, 24 horas antes da revoada para Aragarças.”

“- Repto quem quer que seja a estabelecer qualquer relação direta ou indireta entre os jovens sediciosos de Aragarças e a minha pessoa ou a do Sr. Quintanilha Ribeiro. Vou além: não li a notícia e se encontrá-la, processarei o responsável.”

“- É verdade que o senhor já teria escolhido, para seu Ministro de Relações Exteriores, o Sr. Afonso Arinos?”

“- Grande nome. Está anotada a sugestão.”

“- Soube do acordo comercial firmado com a URSS?”

“- Sim. Pareceu-me pequeno, mas é um bom começo de conversa. O Brasil tem na Rússia, na África, na Ásia, um futuro seguro como grande nação exportadora. Entretanto, os mercados clássicos devem ser mantidos, mas naquela direção e na das próprias Américas, está o caminho do rápido desenvolvimento.”

Estavam sobre a mesa da sala de jantar, dois livros: Roboré, um torpedo contra a Petrobrás, o Retrato sincero do Brasil. O ex-Governador folheava-os e compulsava, também, um estado sobre o café brasileiro no Japão.

Perguntado se tinha algo a dizer a respeito desses documentos, principalmente sobre o acordo de Roboré:

“- Comprometo-me a conceder uma outra entrevista, onde somente tratarei de questões extra-políticas. Tenho muita coisa a falar, coisas que compõem o meu programa de governo, caso seja eleito. Fiz estudos meticulosos a respeito do café, da previdência, do comércio exterior, do financiamento, da oportunidade de novos ministérios, dos transportes terrestres e marítimos, do petróleo etc. Nesta entrevista política não ficaria bem tratar desses assuntos.”

“- Falando em comércio exterior, continua no propósito de fechar os escritórios comerciais?”

“- Na verdade eles carecem de urgente e profunda modificação no que tange aos seus serviços. Praticamente de nada servem hoje, a não ser para exercer uma atividade social. Precisamos dar um sentido de unidade e entrosamento às nossas missões no estrangeiro. Há casos em que a Embaixada está inteiramente divorciada do que se passa no Consulado e nos escritórios comerciais. E vice-versa.”

“- Se assumisse hoje o Governo, concordaria com a continuação das obras de reforma do porta-aviões?”

“- Em princípio sou contra o porta-aviões. Acho que o dinheiro nele despendido seria mais bem aplicado no aperfeiçoamento da nossa frota de superfície. Ou então, na melhora geral da Marinha Mercante, que praticamente inexiste, na instalação de estaleiros e na melhora dos portos, bem como desenvolvimento do ensino naval. Contudo, falo em princípio, pois não sei das razões que levaram o Governo a tal atitude. Caso as autoridades do Ministério da Marinha me expliquem e convençam da conveniência ou necessidade da manutenção de um porta-aviões, então minha opinião poderá ser modificada. Diga-se de passagem, que esse navio, além de todos os argumentos que tem contra si teve ainda a malfadada sina de piorar as já estremecidas relações entre as Forças Armadas.”

Nelson Valente é professor universitário, jornalista, escritor e inestimável amigo.

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1 thoughts on “História das Renúncias de Jânio Quadros ( 1ª Renúncia)

  1. ROSE says:

    Pelo visto Nelson Valente entende mesmo de Jânio Quadros.
    Tem um lado meio romântico de Jânio que ninguém conhece, vejas as frases :
    – Penso eu, que se tentasse eu erraria que se errasse, te magoaria, e que se te magoasse, isso me machucaria, e acabaria com uma vida que seria mal descrita pelo amor.
    Jânio.
    Adoro essa também, é bem clássica e meu pai sempre quando tomava umas falava, rs
    – Bebo-o porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia.
    ( Jânio Quadros )

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