Livro Jânio Quadros: O Estadista

 

Nelson Valente

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Expressar-se por sinais: Artista completo.

 Antes de ser vereador, deputado estadual, prefeito, governador, deputado federal ou presidente, Jânio da Silva Quadros era professor de português. Desde então sabia  – e não esqueceu – que há uma força oculta em cada palavra ou gesto, capaz de ser desencadeada a um mágico toque. Talvez por isso ele mesmo compunha seus discursos  mais importantes, dispensando zelosamente a colaboração de secretários. Artista completo, sua “parte” não está somente nas palavras. Em horas trágicas ou solenes,a composição de sua imagem parece levar a um único fito:  o desconcerto. O senso crítico era sua grande arma.

Populista, Jânio é considerado um grande marqueteiro da política nacional
Populista, Jânio é considerado um grande marqueteiro da política nacional

 As contrações faciais e o olhar projetado ao infinito criavam, às vezes, a impressão de Jânio se movia sob os refletores de cena. A composição da imagem do artista varia conforme a natureza do espetáculo.

 Note no flagrantes, o cabelo penteado, a barba feita, a gravata correta, o paletó abotoado, enfim, o ar distinto com que Jânio aparecia em ocasiões especiais.

 Padecia de leve estrabismo, mas o olhar interior estava certeiramente dirigido a um ponto único. Jânio sabia o que queria.

 Apoiando nos votos e nos ombros de Marrey Jr., elegeu-se prefeito de São Paulo. Daí em frente, ninguém mais o conteve.

 Muita caspa desprendeu-se dos cabelos de Jânio por ocasião da campanha pelo governo do Estado. Eleito governador, a importuna regrediu e exigiria apenas tesoura e pente.

 Nas várias regiões do país o povo construía a imagem de Jânio Quadros a sua maneira, as habilidades físicas e sensitivas do candidato produziam várias imagens no receptor que, de alguma forma, encontravam ressonância no povo. Ele soube compreender as tradições regionais do país e aplicá-las adequadamente conforme a sua intuição.

O senso crítico era sua grande arma
O senso crítico era sua grande arma

 Razões da Renúncia, 2º Jânio da Silva Quadros.

1 – A QUEM FALO E POR QUE FALO

Brasileiros !

A 25 de Agôsto do ano passado, no exercício da Presidência da República, compenetrei-me de que, sem perda da autoridade ou da honra, não mais dispunha de condições, ou de meios, para o fiel desempenho de meus deveres. Nem havia onde e como obtê-los, exceto através das soluções violentas, ou da vergonha das transações.

Daí, a renúncia.

Disse-o, no documento endereçado ao Congresso, que elaborei emocionado, mas resoluto, sob os olhos de vários de meus eminentes auxiliares.

Entendí que, nas circunstâncias de então, era, e ainda o é, bastante explícito. Antes de mim, outro Chefe da Nação, cuja memória guardo com profunda afeição, fôra ao extremo do suicídio, e deixara, na motivação do gesto, razões de relevância, não maiores.

Tinha ciência de que, desvestido do Poder, entregava-me, quase inerme, às mãos das fôrças que me combatem, acrescidas, é óbvio, por muitos que, até então a meu lado, somente intentavam a defesa de suas conveniências.

Convertia-me em um homem comum. Simples cidadão. Um, dentre vós, sem o manto das imunidades ou a armadura dos sistemas e grupos políticos e econômicos.

Não hesitei, porém. Disse aos presentes naquêles instantes de drama: “Não nasci Presidente, mas, nasci com consciência”.

Erguem-se, agora, vozes exigindo que ofereça, nas minúcias, as razões da renúncia. Muitas dessas vozes, por paradoxal que pareça, pertencem àqueles que, de forma direta ou indireta, urdiram a trama que me derrubou.

Outras, são apenas as de curiosos, ou, ainda, a dos céticos infatigáveis. Mas há, sem dúvida, as de conterrâneos do mais puro espírito público, amantes da Pátria, perplexos ou irados, e a êsses, principalmente a êsses, cuja fé vacilou, eu me dirijo.

De um modo geral, conforta-me reconhecer que o Povo anônimo e humilde, não espera, nem exige contas. Provam-no a acolhida e a vibração de Santos e São Paulo, e, logo depois, o inenarrável espetáculo cívico de Belo Horizonte.

Nas três oportunidades, os que contratei e me temem, expressão que fui, e sou, dêsse Povo, buscaram diminuir, deformar, ou simplesmente esconder êssas demonstrações de carinho e confiança.

É no respeito àqueles e, de modo geral, aos que se curvam sôbre o trabalho e constróem, no campo e na cidade, no arado, no tear, no livro, na caserna, no lar, na emprêsa – operário ou dirigente – imaginando um Brasil austero, tranquilo, fecundo, justo, generoso, altivo e soberano, que decidí falar. A todos, inclusive aos prevaricadores, aos corruptos, aos traficantes, àqueles que a paixão cega e a cupidez inflama, na esperança, que ainda sustento, mesmo na iminência da espantosa tragédia nacional que antevejo, de chegarmos à salvação coletiva.

2 – O QUADRO POLÍTICO

A disputa eleitoral que me guindou à chefia da Nação, em seus elementos constitutivos, de percepção fácil encerra uma lição terrível. O Povo, em sua angústia e em sua cólera, desbordou os Partidos, condenando, a um tempo, os métodos de ação política, e os programas ultrapassados ou equívocos. Registrava eu, e registro ainda, com veemência redobrada, o surdo rumor dêsse desgôsto e dessa rebeldia. Não me enganava em que, lançado candidato, na identificação dêsse estado de espírito, tentar-me-iam tolher, nos compromissos e nas transigências, até minha desfiguração, a meus próprios olhos, e aos de nossa gente. Sabia que os velhos e corroídos métodos, inteiramente inaceitáveis para as multidões traumatizadas e, por isso, amadurecidas, politizadas quase com instantaneidade, tentariam sobreviver, tendo como instrumento o candidato.

Em poucos, bem poucos, registrei a compreensão das reformas fundamentais que o País exigia. O que supunham, na esmagadora maioria, aquêles que de mim se aproximavam, é que a minha pregação, e a receptividade com a qual as multidões a escutavam, lhes servissem para a tentativa da perpetuação de sistema, já decomposto, com o engôdo primário da mera substituição dos homens. Em outras palavras: manter-se ia o embuste governamental, subindo os que estavam embaixo e descendo os que estavam em cima, alternando-se todos, apenas, na posse e no desfrute do Poder.

Lembrem-se os que me vêm e ouvem que, em dado instante, embora a perspectiva tangível da vitória, renunciei à minha candidatura. Claro, entenderam os profissionais do sistema, que essa renúncia era uma farsa. No entanto, se alguns dos amigos que sobrevivem em meu coração, e muitos dos que me atraiçoaram e abandonaram, quisessem ou pudessem depor perante a História, verificar-se-ia que a atitude não só era expontânea, mas, era definitiva.

Afinal, o que me demoveu, além dos reclamos do Povo, foi a dúplice e enganosa convicção que me chegou, de que aquela renúncia se erigia em séria advertência aos grupos de tôda espécie, dêste ou daquele campos e, ainda, a de que me cumpria, como dever inelutável, tentar nas instituições e estruturas vigentes, a esperada obra de renovação. A isso me dispus, retomando a campanha, mas em têrmos da mais absoluta rigidez na defesa dos postulados que a inspiravam, para que não se desfigurasse, em mim, a expressão da inconformidade popular.

Eis-me, após campanha memorável, na qual afirmei, em cada canto de nossa Terra, com franqueza brutal, os pontos de vista e os propósitos do Povo, conduzido por seis milhões de brasileiros, à direção da Pátria.

Registre-se que nada do que faria, a seguir, em nenhum detalhe, em nenhum ítem, em nenhum ponto, deixara de ser proclamado pelo candidato.

Sabeis disso, e todos podem verificá-lo.

Aí estão, como exemplos, o discurso sôbre Relações Internacionais, no geral, e Cuba, no particular, proferido na sede de uma revista, e a síntese de ação futura chamada “Diretrizes de Govêrno”, lida por mim, em praça do Recife.

Exercia o Govêrno.

Estava em minoria, no Congresso. E a maioria, inconformada, com a perda das posições, como se comprovou mais tarde, chegaria a quaisquer extremos.

O que, realmente, ocorrera é que o resultado do pleito havia, implicitamente, infirmado três quartos daquêles mandatos; e minha presença, na Presidência, se o Govêrno não negasse a sí mesmo, à sua matriz, a seus fins, ratificaria, nas eleições seguintes, essa cassação.

Estávamos, a maioria e eu, em oposição irremissível.

Ela significava o anti-Brasil; endividado, impontual, em seus compromissos. Desordenado, nas suas finanças. Anárquico ou viciado, na sua administração. Delinquescente, na ordem social. Títere de outrém, no plano internacional. O Brasil sem autoridade. Dos favores, das propinas, do desvio das verbas que deveriam mitigar a fome e a sêde, ou curar os enfêrmos.

O Brasil das obras suntuárias que, na espiral inflacionária, proletarizava sua classe média, enquanto atirava à miséria seu operariado. O Brasil que tudo isso padecia, em nome das liberdades democráticas, dos princípios do desenvolvimentismo e, até, da emancipação nacional.

Coloquei-me, em relação a essa maioria, à distância que a Constituição autorizava, e era a única compatível com minha origem. Não lhe faltei, contudo, com a deferência devida ao Poder que representava. E lancei-me à obra hercúlea, desincumbindo-me das obrigações inerentes a meu cargo, convictom de que até meus piores opositores ver-se-iam desarmados, ou deixar-se-iam convencer ao cumprimento de suas obrigações.

Chamei hercúlea a obra. Era-o, e como !

Cabia realizá-la de Brasília, sem alternativa. Hesitasse, e converteria a Capital incipiente, já de fachada esplêndida – sorvedouro insaciável de tantos recursos – em uma dessas cidades da finada civilização mexicana, descobertas quase intactas, na sepultura das florestas.

Madruguei, e anoitecí sôbre a minha mesa.

Em apenas 12 anos, Jânio passou de vereador a presidente da República
Em apenas 12 anos, Jânio passou de vereador a presidente da República

3 – A SITUAÇÃO FINANCEIRA

O orçamento para 1961 foi votado com um “déficit” de 56 bilhões de cruzeiros. A êsse valor deve-se acrescer o montante de 57 bilhões, diferença entre a verba consignada no orçamento e a efetivamente devida ao funcionalismo. Mais 21 bilhões, decorrentes de subvenções à Rêde Ferroviária Federal e à Marinha Mercante. Chegava-se, assim, a um “déficit” de 134 bilhões.

A êsse montante, entretanto, cabe aduzir 73 bilhões de restos a pagar, fundos especiais, créditos especiais transferidos e créditos reabertos, o que elevava o “déficit” a 206 bilhões.

À cifra, cumpre somar cêrca de 30 bilhões de cruzeiros; recursos de financiamento para a “Usiminas”, a “Cosipa”, a “Companhia de Alcalis” e a “Petrobrás”, o que eleva o “déficit” financeiro potencial a 240 bilhões.

O Govêrno, ademais, precisava pagar, no exercício, de atrasados comerciais, PVCs e Contratos de Câmbio, 440 milhões de dólares, fechados à taxa oficial de 18,92 cruzeiros e cujos ágios importavam em 92,4 bilhões de cruzeiros. Todo êsse volume de dinheiro fôra recolhido pelo Govêrno anterior, ficando a responsabilidade do seu resgate com a minha Administração. Teria, mais, sempre no exercício de 1961, de pagar 140 milhões de dólares de “swaps”, que representavam outros encargos, da ordem de 14 bilhões de cruzeiros. E era mistér, por fim, suportar o onus de vender 650 milhões de dólares, ao falso câmbio de custo de Cr$100,00. A diferença entre êste valor e o custo real do câmbio, se expressava na quantia de 52 bilhões de cruzeiros.

Na realidade, portanto, o “déficit” potencial financeiro, para o exercício de 1961, elevava-se a 440 bilhões, quase meio trilhão de cruzeiros !

Para enfrentar situação de semelhante dramaticidade decidiu o Govêrno:

1 – eliminar gradativamente o denominado câmbio de custo, abolindos e o artificialismo oneroso do Tesouro;

2 – drástico corte orçamentário, nos programas de investimentos e despesas com materiais;

3 – receita proveniente do ajustamento do dólar fiscal;

4 – receita proveniente das letras de importação;

5 – receita oriunda da diferença de preço dos estoques de trigo, papel e petróleo;

6 – revisão das tarifas dos serviços públicos subvencionados, ajustando-os a seu real valor. Quanto aos débitos externos, obteve o Govêrno os seguintes resultados, fruto da firmeza e acêrto da política financeira e cambial adotada:

1 – o Fundo Monetário Internacional prorrogou as nossas responsabilidades de vencimento imediato, no total de 140 milhões de dólares e concedeu novo crédito, no valor de 160 milhões de dólares;

2 – os Bancos privados americanos concordaram em consolidar nossas dívidas de 210 milhões de dólares, para pagamento em 6 parcelas semestrais, a partir de abril de 1963;

3 – o Export-Import Bank consolidou o saldo de seus empréstimos compensatórios, no valor de cêrca de 213 milhões de dólares, para liquidação em 20 anos, com período de carência até dezembro de 1963; consolidou, ainda, o saldo de cêrca de 92 milhões de dólares de financiamentos de exportação e projetos específicos, para pagamento em 20 anos, com carência até junho de 1967;

4 – nossos credores europeus – França, Alemanha, Itália, Holanda, Inglaterra, Suiça e Suécia – concordaram em consolidar nossas dívidas de 300 milhões de dólares, para pagamento em 10 anos, com carência de 2;

5 – os Bancos privados europeus, da França, Itália, Suiça, Suécia, Inglaterra, Bélgica, Holanda e Alemanha, firmaram contrato do “stan-bycrédit” com o Banco do Brasil, num total de 110 milhões de dólares;

6 – o Tesouro dos Estados Unidos concedeu empréstimo de 70 milhões de dólares, para financiamento de eventuais “déficits” em nosso balanço de pagamentos;

7 – o Tesouro americano concedeu-nos mais 100 milhões de dólares, que seriam recebidos em setembro de 1961, quando concluída a votação do crédito solicitado pelo Presidente Kennedy, para pagamento em cêrca de 50 anos;

8 – os Bancos particulares americanos nos emprestaram 48 milhões de dólares, para pagamento em 5 anos;

9 – o Govêrno americano concedeu crédito de 70 milhões de dólares, para compra de trigo, pagável em cruzeiros, a 40 anos de prazo, com 4 de carência, menos 14 milhões, que figuraram como donativo.

Conseguiu-se, afinal, que o Govêrno americano transformasse em donativo, para o Nordeste, 34 milhões de dólares da compra de trigo, realizada do govêrno anterior.

4 – A SITUAÇÃO ECONÔMICA

A situação econômica delineava-se, todavia, mais grave.

O Brasil é um país, notoriamente, ávido de capitais; de reduzida taxa de poupança.O fenômeno decorre do baixo nível de renda real “per capita”, em conseqüência de um volume insuficiente de investimentos, como decorrência, inclusive, daquela mesma falta de poupança. Trata-se de círculo vicioso, que nossa política econômica tentou romper, no após-guerra. Através do regime cambial, resultante de medidas discutíveis, quanto ao mérito, aos poucos se compôs um sistema, por via do qual, os ganhos do comércio externo foram dirigidos para investimentos industriais. Por meio do chamado “confisco cambial” extraiam-se vantagens da posição estatística do café e dos preços internacionais das matérias-primas e gêneros alimentícios, durante e depois da guerra da Coréia. A concomitância do regime cambial vigente, com a expansão inflacionária interna, gerou, como é do conhecimento de todos, uma transferência de poder aquisitivo, deslocando-se do setor exportador, para o setor importador de nossa economia. Efetuaram-se, assim, grandes importações de equipamentos e matérias-primas para investimentos. Quando as possibilidades de expansão se reduziram, recorreu-se, largamente, a financiamentos do Exterior, para manter elevado o nível das importações.

Desta forma, chegamos a “dever” ao Exterior, a curto prazo, a soma fabulosa de mais de dois bilhões de dólares.

O inconveniente do regime, era evidente. Desestimulava as exportações, ao mesmo tempo em que estimulava as importações. Criado êsse estrangulamento, sobrevinha a necessidade de recorrer a empréstimos, que oneravam nossa balança de pagamentos, com a remessa de juros e amortizações.

Para o desenvolvimento econômico do Brasil não se estancasse, impunhase o incremento das exportações. Se o lográssemos, atenderíamos aos compromissos cambiais, de anos anteriores, sem prejuízo da continuidade das importações essenciais ao País, em especial, de equipamentos e petróleo.

O regime anterior – do confisco cambial – continha indisfarçável contradição; desestimulava as exportações de produtos agrícolas e industriais, para manter em níveis estáveis, a receita de divisas fortes, proveniente das vendas de café. A repercussão do fenômeno, sôbre a estrutura produtiva do País, era profundamente inconveniente. Se de um lado, desestimulava-se a produção de vários artigos, por outro, canalizavam-se os recursos disponíveis para aquela cultura, cujas safras, por sua vez, empilhavam-se, para impedir queda na receita cambial.

Desta forma, se aquêle círculo vicioso foi, em certo sentido, superado, criou-se outro, que cumpria, igualmente, quebrar. A solução era a do encorajamento das exportações, objetivo que se buscou ateríder, com a agressiva política comercial do Govêrno, na conquista de novos mercados, onde existissem.

Apesar das dificuldades e dos percalços, a política comercial que estabelecí apresentou resultados francamente animadores: em 1959, as licenças de exportação, com exclusão do café, atingiram, até agôsto, a cifra de 427 milhões de dólares; em 1960, 435 milhões de dólares e, em 1961, 523 milhões de dólares.

De qualquer modo, os índices econômicos e financeiros, obrigavam o Govêrno a providências drásticas, de contensão das despesas públicas, sem que fôsse possível, todavia, sob pena de sérios danos à vida nacional, interromper, de pronto, o jôrro das emissões.

Contive-o no estritamente necessário.

Contemporâneamente, tratei, acertadas as nossas contas com os credores estrangeiros, e obtidas novas linhas de suprimento, de ampliar os volumes e as áreas das nossas exportações e importações.

Aí residia a base de nossa sobrevivência como Nação soberana: alargaríamos o nosso comércio com o estrangeiro, ou pereceríamos! Essa a alternativa.

Jânio Quadros - Presidente do Brasil
Jânio Quadros – Presidente do Brasil

5 – A POLÍTICA INTERNACIONAL E A ECONOMIA

BRASILEIRA

As limitações da nossa economia confundiam-se com as limitações da nossa política externa. Era em decorrência desta que viríamos a afirmar a soberania nacional, convivendo com todos os povos, sem considerações de raça, credos ou filosofias, assumindo nossa maioridade no mundo, ou não teríamos sequer a oportunidade de incrementar o nosso intercâmbio comercial e cultural, quebrando as cadeias que nos jungiam a impérios ideológicos e econômicos. Tal conduta não implicava em hostilizar qualquer Nação mas, por certo, iria contrariar interêsses poderosos.

As relações com Cuba e nossa presença na África, na Ásia e nos países socialistas se convertiam, pois, nas diretrizes da ação política essencial à soberania, ao progresso, à segurança e ao bem estar de nossa Terra.

Cuba, no contexto destas preocupações, não era apenas a séde de uma revolução vitoriosa, no Caribe. Passou a representar, os próprios fundamentos da política continental; a afirmação dos princípios de auto determinação dos povos, e da não intervenção.

Mais do que isso; confundiu-se o problema cubano com a histórica oportunidade, para o Brasil, de comportamento adulto, nas suas relações de potência para potência.

De um lado, essa política rasgaria horizontes ilimitados para nossa atuação nos estados socialistas e nos jovens estados que emergiam do colonialismo decadente, bafejados pela nossa simpatia, traço constante da generosidade brasileira.

Por outro lado, fundava-se também, essa mesma conduta, no seu aspecto global, em nossos melhores sentimentos cristãos, e no instintivo horror à opressão, ao preconceito e à violência, que definem a história de nosso País.

Poucas nações poderiam, com a autoridade de nosso passado, na luta pelo congraçamento de tôdas as raças e de tôdas as convicções, falar a êsses jovens estados, encorajando-os, sobretudo no plano moral, prevenindo excessos, e evitando que a reação, com atos de desespêro, viesse a conflagrar tôda a humanidade.

Êsse o nosso papel; o da nossa vantagem, e para nossa ventura, o da nossa predestinação.

Tais rumos, tidos como revolucionários por muitos, mas, indiscutíveis para o Povo e para mim, tinham sido fortemente anunciados pelo candidato.

A imprensa reproduzia, na íntegra, discurso que proferi em público e que relembro, agora, em alguns trechos:

“Penso em Cuba. É tema que se impõe à meditação de todos. Vejo em Cuba o justo e poderoso anelo de um povo buscando a sua emancipação econômica e social. Um povo em pleno processo de afirmação nacional, órfão de compreensão e de estímulo. A tragédia cubana, que gerou a figura entre heróica e romântica de seu condutor, ameaça todo o sistema continental. Poderá, se mal examinada, jogar por terra a laboriosa ação político-jurídica da Organização dos Estados Americanos”.

E acrescentei:

“Desejo, portanto, afirmar que não prevalece, no mundo contemporâneo, o regime das sanções políticas, militares e econômicas. Tal método acha-se recolhido ao museu dos arcaismos diplomáticos. É a partir destas convicções que cumpre abordar a crise cubana. Cuba não reclama pressão nem justifica sanção de qualquer espécie. Cuba exige compreensão. Não se cuide de puní-la, mas de auxiliá-la: hostilizá-la no Continente corresponderá seguramente a compelí-la a procurar ajuda e segurança fora do hemisfério”. Essa análise, divulgada em julho de 1960, os fatos a tornaram profética, como acentuei; os adversários e muitos dos que me sustentavam recusaram se a crer no que eu dizia. Dentre os primeiros, alguns cuidavam que eu nada mais fazia senão disputar-lhes as platéias. Era um mistificador. Dentre os últimos, alguns assoalhavam que as afirmações visavam permitir, com habilidades e palavra fluente, a troca dos homens, com a permanência do sistema.

6 – A REAÇÃO ARTICULADA

Não tardou, e percebi, ao meu derredor e sob os meus pés, as articulações dos interêsses contrariados. Dentro e fora do País.

Visitando-me, em março, o Sr. Adolph Berle Junior, coordenador dos Assuntos Latino-Americanos do Departamento de Estado, manifestava apreensões quanto à orientação brasileira. Referia-se às inversões dos Estados Unidos no país do Caribe, e insinuava ação conjunta da família continental, de natureza política, econômica, e até militar. Repeli-o, com polidez, mas com firmeza.

A essa visita, seguiu-se a do Embaixador Cabbot, que, em fevereiro, e depois, a 17 de agôsto, cauteloso, mas obstinado, reiterava aquêle desagrado.

Em abril, o Sr. Dillon tentara, perante mim, estabelecer correlação entre a política externa brasileira e nossos compromissos e necessidades financeiras nos Estados Unidos. Respondi-lhe que não discutia, sequer, aquela política.

Afirmei que a fidelidade do Povo brasileiro aos processos democráticos, à unidade continental e às próprias instituições, sob ameaça da crise financeira e econômica, da fome, da miséria e da injustiça social se subordinava ao êxito dos nossos entendimentos com o grande vizinho do Norte, cuja nova Administração víamos com fundadas esperanças e cujo Povo estimávamos, fraternalmente.

Hão de recordar-se todos que, antes de deixar o nosso País, já substituído e noticiada essa substituição, o Embaixador Cabbot permitiu-se, no Rio de Janeiro, fazer declarações públicas que importavam em interferência descabida nas diretrizes de nossa conduta.

Sem perda de tempo, e me valendo da inauguração da Exposição argentina, naquela cidade, presente o Embaixador, dei-lhe a resposta peremptória, que os sentimentos patrióticos do Brasil ditavam.

Em julho, era o Embaixador da República Federal da Alemanha, isto é o de Bonn, que me transmitia a irritação do seu govêrno, à notícia de que uma Missão Brasileira visitaria a outra Alemanha, e de que receberíamos, aqui,  Ministro ou Ministros do respectivo govêrno. Desejava saber se isso implicava em uma revisão das nossas posições na questão de Berlim, e no possível reconhecimento daquêle outro Estado. Respondi à indagação inicial pela negativa, embora insistisse em que o Brasil e seu Povo, só admitiam, para a questão de Berlim, uma solução pacífica. No tocante à última, disse-lhe que dela cogitava, pelo menos naquêle instante, enquanto a ONU e várias Nações examinavam o problema. O Brasil se reservava êsse direito, para uso oportuno.

E aduzi que não tendo sido eu, pessoalmente, nem nosso Povo, responsáveis pela existência de duas Alemanhas, curvava-me à frente da realidade, e com ambas comerciaria, sem quaisquer considerações estranhas a nossos interêsses. Comerciaria com dez alemanhas, se dez existissem.

Coincidentemente, poderosos jornais e eminentes figuras de todos os setores do poder econômico, político e social, desencadeavam luta aberta ao meu Govêrno.

Anunciava-se meu “impeechment”. Lia-se da tribuna da Câmara um manifesto de generais, e o Governador da Guanabara iniciava uma série de virulentos ataques à política externa.

Poupava-me, a mim, nas aparências, mas não se enganava quando supunha que sôbre essas política externa estava assente tôda a obra político administrativa e sócio-econômica, a que me propunha.

Julgava-me tranquilo. Confiava na autoridade presidencial e na autoridade do Govêrno. Supunha que enquanto fôsse autêntico, enquanto não se comprometesse, não me distorcesse nas concessões e nas transigências, o

Povo não me faltaria, como realmente não me faltou, com sua compreensão e solidariedade.

Não imaginava que essas fôrças pudessem investir contra mim, ao revés do sentimento das massas.

Sabia da hostilização permanente, de uns poucos, mas perigosos comunistas. A êsses, eu enfrentara desde o início de minha vertiginosa, mas, atribulada vida pública. Sempre me combateram; sempre os combati.

Combatia-os convencido que estava, e estou, de que dentro do regime democrático, promovidas as corajosas transformações orgânicas que entreguem o Brasil aos brasileiros, inspirados os governantes no verdadeiro nacionalismo, ao qual repugna, com o mesmo asco, tanto a sovietização da Pátria, quanto a ditadura do poder econômico interno e externo que nos explora, encontraríamos solução para os nossos males: Essas reformas deveriam alcançar tôda a estrutura da vida nacional, adaptando-a aos novos tempos, às novas exigências, permitindo ao Govêrno através de meios hábeis, eficientes, seguros, a consecução de seus fins em pról do bem estar social. Essas reformas dariam, em súmula, legitimidade à representação popular, e erradicariam, de vez, os demagogos, os mentirosos, os desonestos, fazendo, ao mesmo tempo, impossível a exploração do homem pelo homem, no proveito dos maus brasileiros, ou da cupidez estrangeira.

Uns e outros, comunistas e porta-vozes dêsse poder econômico corrupto e corruptor, compuzeram-se para a minha deposição.

É a mais estranha de tôdas as simbioses.

Quem examinar o quadro nacional de agôsto encontrará, de mãos dadas, na aparente contradição das teses e absoluta identidade dos fins, êsse poder econômico e êsses comunistas, isto é, os grupos e instrumentos financeiros do Brasil e do Exterior, ao lado dos agentes da subversão vermelha, na mesma tarefa de desmoralização e derrubada do Govêrno.

Aos primeiros, eram aparadas as garras. Limitava-se-lhes a voracidade; os apetites. Dispunha-se o Govêrno a discipliná-los respeitando o capital e a emprêsa privada, nossa ou do estrangeiro, mas, exigindo que se colocassem a serviço da Nação e de seu Povo.

Aos segundos, alcançava-os o Govêrno em suas bases, mostrando ao proletariado consciente que o remédio para os nossos males não precisa ser importado, nem implica na supressão de valores cristãos, morais e terrenos, que julgamos insubstituíveis.

A 3 de agôsto, recebí, em Brasília, o Presidente do Peru, a quem expús os fundamentos das diretrizes de nosso País, no campo internacional. Dirigindose ao mesmo Presidente, no Rio de Janeiro, logo depois, declarava o Governador da Guanabara, em discurso de saudação:

“Nossa atual política exterior está destruindo a unidade do continente americano e colocando o Brasil como cabeça de ponte diplomática para a Rússia completar o que militarmente iniciou em Cuba, com a invasão de técnicos que preparam, para todos nós, dias de agonia”.

Não era verdade. Êsse pronunciamento, porém, como outros que o antecederam, já nos causava grandes danos, fora de nossas fronteiras.

No triste desconhecimento em que os nossos Govêrnos deixaram o Brasil, do exterior ainda se confundia o Rio de Janeiro com a Capital da República.

Por esta razão, o noticiário que saia de nosso País, muitas vêzes parcial, senão contrário às nossas conveniências e à nossa realidade, agravava a confusão. Dir-se-ia que tínhamos dois responsáveis pela condução de nossos destinos, ou que existiam duas pátrias.

No Congresso, as mensagens, que eu enviara, não caminhavam. O projeto de lei anti-truste era acusado de esquerdismo e mutilado; o de remessa de lucros era acusado de direitista, e, afinal, substituído por outro.

Não tardou que um ataque geral, compreendendo a grande imprensa, os meios políticos e extensa maioria da Câmara, fôsse lançado contra meu Govêrno.

Dirigentes de partidos, tradicionalmente incompatíveis, entre si, buscaram e acharam, na luta contra nossa política de austeridade e de libertação popular, um denominador comum.

O presidente do Partido Libertador e os chefes do Partido de Representação Popular condenavam-me a política, em surpreendente ação conjunta com os líderes do P.S.D., do P.T.B., do P.S.B e do P.S.P. Restava-me a U.D.N., fartamente representada na Administração.

Naquêles primeiros dias de agôsto, entretanto, o presidente da União Democrática Nacional procurou o Ministro da Justiça para significar-lhe a insatisfação de seus correligionários, diante dos rumos do Executivo. Essa inconformidade seria polarizada, aduziu, pelos governadores de Alagoas, Bahia, Pernambuco e Guanabara.

Na mesma proporção em que tinha o Povo por mim, tinha os políticos dominantes contra mim.

O desleixo pela causa pública, pela promoção das medidas de interêsse geral, demonstrado, por quase tôda a Câmara, traduzia-se, agora, em mobilização dinâmica, implacável, na arremetida contra o Presidente.

Como, no exercício de prerrogativa minha, e por motivos que entendi superiores, outorguei a Ordem do Cruzeiro do Sul, ao Ministro da Economia de Cuba – e no Ato deixei bem claro que distinguia o Ministro – o Ministro! -, noticiou a imprensa um movimento entre oficiais das Fôrças Armadas, no sentido de se despojarem de suas condecorações.

Nêsse mês de agôsto os ataques ao Govêrno avultaram em seu ímpeto, e foram em crescendo até a noite de 24, quando o governador da Guanabra, pela televisão, entendeu anunciar conspiração oficial, que envolvia colaboradores diretos da Presidência, no intento de destruir a ordem democrática.

Confessava não ter provas. Dizia textualmente: “fica a minha palavra contra a dêle”.

Confortado pela minha consciência e habituado às invectivas e aos excessos do referido governador não dei maior significado à acusação.

Jânio Quadros em campanha
Jânio Quadros em campanha

7 – O QUADRO CRIADO PELA REAÇÃO

Na antemanhã, a caminho do Palácio dos Despachos – e só aí -, tive ciência do que sucedera: as fôrças terríveis a que aludira depois, no documento de renúncia, lograram reunir a Câmara naquela madrugada, convertendo-a em Comissão Permanente de Inquérito, sem precedentes, com a mobilização de Deputados.

Falava-se no “início de um grande processo”; falava-se em “indiciados”; exigia-se o chamamento imediato, ao Plenário, do “acusador” e dos “acusados”.

O inquérito não atingia ministro ou ministros; atingia ao Presidente, do qual êstes eram simples delegados. O que se desejava destruir era a autoridade do Poder Executivo, inquerindo-o e estraçalhando-o naquela mesma tarde, nos têrmos da intimação que indicava o dia, o local e a hora, tudo no arrepio da lei da Câmara e da própria Constituição, que faz os ministros responsáveis sòmente perante o Presidente, ou perante o Supremo Tribunal. Se acolhida a intimação, conspurcado estaria o Poder Executivo envolvido no labéu de uma conjura. Desapareceria sua fôrça que repousava na fidelidade à lei e em sua aplicação inflexível. Desvestia-se, seu Chefe, da majestade com a qual encarnava o povo que o conduzira ao cargo. Roubava-se sua independência, para sujeitá-lo a um processo infamante e violento. Sem apôio a qualquer texto legal. Arrombava-se e envadia-se a Séde da Presidência, como já se fizera em outra oportunidade, com outro Presidente.

Era o “Dia do Soldado”.

Devia eu participar da cerimônia. Condecorar Bandeiras.

Convoquei os ministros militares; o Ministro da Justiça; o Chefe do meu Gabinete Militar, o Chefe de meu Gabinete Civil. O secretário Particular.

Expuz-lhes a seriedade da situação. Encontrei-os conscientes dessa gravidade.

Se admitida a monstruosa Comissão Permanente de Inquérito, na qual a Câmara se convertera de madrugada, desapareceria a autoridade presidencial.

Esta, o único patrimônio do Govêrno. Patrimônio haurido na manifestação revolucionária das urnas, a mesma manifestação que destituira a antiga maioria.

Era o próprio Govêrno. A sua voz; a sua firmeza; o respeito que informava; a sua fôrça. Não havia como tolerar o abuso, exceto com a capitulação.

Examinei, à presença daquêles colaboradores, cada uma das alternativas.

Podia intervir na Guanabara. Era uma hipótese. Por via da intervenção colhia a cabeça que, desejada por muitos dos que me agrediam, possivelmente os aplacaria, deslocando a área da crise. Antepor-se-ia e sobrepor-se-ia, então, ao pretexto de que se valera a Câmara, um impacto emocional, capaz de distrair a opinião e, no entretempo, cogitar-se-ia das medidas que circunstâncias ulteriores recomendassem.

Não encontrei em mim disposição para adotar o que me pareceu um expediente. A própria autoridade política e moral que desejava salvaguardar, se me afigurava incompatível com a intervenção, que assumiria, aos olhos de muitos dos meus conterrâneos, o caráter de vindita ou de fuga às minhas ocasionais responsabilidades. Afastei a idéia.

Numa segunda hipótese, poderia dispor-me a reduzir a Câmara, que nada me dera, porque empenhada na minha demolição, ao último desprestígio.

Dir-lhe-ia, simplesmente, que ministros meus, naquelas circunstâncias, jamais deporiam. Não me impressionava, e sabia que não os impressionava o depoimento em si, e sim o processo que, ao atingí-los, objetivava realmente tão só ao Chefe da Nação.

Em um e outros casos, eu teria lançado a nossa Pátria no plano inclinado das repercussões incalculáveis.

Se tivesse vencido os meus escrúpulos, para intervir, talvez ensanguentasse as minhas mãos, e o faria na condição de parte no processo, eis que a denúncia me visava. Fôra articulada contra mim.

Se alvitasse a Câmara e encarnecesse da sua autoridade, como ela escarnecera da minha, teria dado o penúltimo passo para a destruição daquêle Poder, que já perdera o respeito das massas. Aí, inclusive os homens bem formados, e aquela Casa os tem, precisariam reagir em sua defesa. Teríamos agravado a crise institucional, o conflito irremediável dos poderes, a levar-me, inexoravelmente, ou à capitulação, ou às inelutáveis conseqüências.

Podia, afinal, recorrer ao golpe.

Nunca me preocupei, meus concidadãos, com o que se chama “a situação militar”. Atribuí, com exclusividade, aos respectivos Ministros, a gerência dessas Pastas. Não tinha o que se denomina “dispositivo próprio”, nem o encorajava. Queria, e só, nos comandos e nas promoções, os melhores soldados; desejava, e só, nas três corporações, a submissão à lei, isto é, ordem e disciplina, sem as quais não poderia entregar-me ao trabalho. Jamais persegui ou insinuei perseguições. E a bem da verdade devo proclamar que encontrei, em tôdas as armas, sobretudo na sua mocidade, colaboração embarcada pelo mais profundo idealismo.

Mas, e o golpe?

Eu jurara a Constituição. Era alguém que, nos braços do Povo subira de uma vereança à Presidência da República. Tôda a minha pregação sustentara em sua essência o processo democrático. Êste possibilitara ao modesto advogado e professor a Primeira Magistratura. A democracia fôra e devera ser a estrêla tutelar de minha vida.

Em nenhum instante, como sucedeu a muitos de nossos melhores democratas, compactuara com a ditadura. Nela, jamais pleiteara algo; jamais recebera coisa alguma.

Não fôra eleito para rasgar, ameaçado e acuado, a Carta que jurara.

Os três recursos demoravam à minha frente.

Repito para o vosso conhecimento: foi plena a minha autoridade no comando do  Poder que me incumbia. Autoridade que resultava da inteireza moral. Da rigorosa exacção no dever. Das inequívocas raízes populares.

Sentia, em tôrno de mim, como a estreitar-me, o calor do apôio brasileiro.

Não me convenciam as hipóteses que se me apresentavam. Tôdas elas despojavam-me daquela autoridade. Tôdas elas podiam, com ou sem êxito, não importa, enlutar a família nacional. Se qualquer delas adotasse, atraiçoaria a mim mesmo. Negaria a minha pregação. Teria, sempre a perturbar-me a consciência da ilegitimidade do Poder.

8 – A RENÚNCIA

Havia outra porta. Não era, exatamente, a escolhida, por outro Presidente. Êsse, por motivos vários, admitira um inquérito e, só muito tarde, percebeu que o procedimento objetivava a sua pessoa. Só lhe restou a dignidade na morte. Vi, claramente, isso. Não era contingência a que me devesse entregar, porque, mercê de Deus, mantinha ainda a dignidade em vida. Por isto, renunciei.

Não demorou, e recebi notícias da posse festiva de meu sucessor legal. Com raras exceções, o ambiente político de Brasília, era o da euforia. Acomodavam-se, todos.

Só eu não podia permanecer. Permanecesse, e me converteria num foco de agitação. Um motivo de inquietude. A matriz de desordens. Só me restava, a bem da Pátria, o exílio voluntário. Foi o que fiz.

Não tive e não tenho qualquer responsabilidade no parlamentarismo que se implantou. Não o rejeito de plano. Minha impressão pessoal é a de que, para a manutenção do sistema político-administrativo, contra o qual fui eleito na rebelião popular, como se adotou o parlamentarismo, poder-se-ia ter estabelecido a monarquia!

9 – RUMOS FUTUROS

Agora, meus patrícios, as palavras finais.

Incitam-me a condenar homens. Recuso-me. Importam pouco. Falo na condição excepcional de quem exerceu a Presidência da República, esgotando a sua biografia. Admito, só para argumentar, que ao meu pior inimigo inspire o desejo de servir ao Brasil. Não o fará neste arcabouço! É total a inadequação do nosso Govêrno às necessidades nacionais.

Precisamos ajustar a política brasileira, a administração brasileira, a economia brasileira, a sociedade brasileira, aos reclamos do novo Brasil.

Temos que encontrar, dentro da formulação democrática, caminhos pelos uais a nossa Constituição, o voto popular, e, em conseqüência, as transformações fundamentais atendam às nossas exigências. Temos que colher no Povo, que é a única fonte da nacionalidade, as suas aspirações, e convertêlas em realidades tangíveis. Temos que casar a política e a Nação, pondo fim a êsse divórcio que, se subsistir, implicará em nosso desaparecimento.

Não perdi a fé. E porque não perdi a fé, prossigo e luto. Agora, sou apenas um dentre vós. Nada me resta. Nada, exceto a certeza, que vos reitero, de que em nenhum momento vos enganei. Saio, pois, em pregação, pelo imenso País. Vou às cidades e aos campos. Falarei a todos, preconizando essas reformas básicas que nos facultarão, sincronizados Govêrno e Povo, converter-nos em grande Nação. É uma cruzada a favor de todos.

O que cumpre é impedir que os reacionários, os corruptos, os comunistas, lancem-nos à tragédia, na ocupação, ou na manutenção dos postos-chaves da República. O que cumpre é impedir que o Poder Econômico continue na sua espoliação do país, desgraçando-o e desgraçandonos. A isso me proponho.

Devo-o a cada um de vós, ao operário, ao camponês, ao comerciário, ao estudante, à mãe de família, ao industrial consciente, ao meu irmão esmagado pelo ceticismo, pelos sofrimentos.

Nunca me senti mais forte do que nesta hora. E, por isso mesmo, a todos conclamo à obra ingente. O que asseguro aos incrédulos, aos indiferentes, aos egoístas, é que se não nos unirmos para dar pão aos que têm fome, água aos que têm sede, teto aos desabrigados, roupas aos desnudos e justiça aos perseguidos, – dignidade humana ao brasileiro! – todos nós mergulharemos nas trevas. Nas trevas sem fim.

(*) Jânio Quadros

(*) Erros ortográficos mantidos para preservar os documentos originais

Capa do livro Jânio Quadros: O Estadista
Capa do livro Jânio Quadros: O Estadista
Segue livro e link para o  download gratuito do livro: JÂNIO QUADROS: O ESTADISTA
235963-Janio-Quadros-o-Estadista/
Livro: Jânio Quadros: O Estadista
Autor: Nelson Valente
Editora: Edicon
432 Páginas Ilustradas com fotos e bilhetinhos (inéditos)
Patrocinador: Fundação Presidente Jânio Quadros

6 thoughts on “Jânio da Silva Quadros: 51 anos de sua renúncia

  1. Valter Duarte Ferreira Filho says:

    Erick

    Jânio não pertencia a nenhum partido; não era correligionário de Lacerda. A crise de Jânio com a ordem política da época começou no fato de ele não pertencer a nenhum partido e de não querer privilegiar ninguém em seu governo.
    Quem conhece o Brasil sabe o quanto, naquela época e hoje, é difícil, senão impossível, sustentar uma posição política com tal pretensão de isenção em relação às forças políticas (terríveis).

  2. Lino Tavares says:

    Literalmente falando, a trajetória política de Jânio
    Quadros foi uma coisa de “LOUCO”. Cabeças como as de Jânio e Mané Garrincha não foram feitas para serem entendidas. Quem ousaria definir uma criatura instável e cheia de manias como o JQ ? Era um dos poucos seres humanos que conseguia oscilar entre atitudes de gênio e de paspalhão. A carreira dele foi meteórica, de vereador a presidente. E Dona Dilma, que, ser ter sido sequer suplente de síndico de edifício, acabou no trono que o Jâneio sentou, não gostou e renunciou (ou foi renunciado). Acho que o Jânio foi o nosso Calígula tupiniquim.

  3. Nelson Valente says:

    Prezado Erick Figueiredo,

    excelentes observações.

    Erick,

    Sobre rumores de crise ministerial, face a demissão do ministro Clemente Mariani, da Fazenda, Jânio Quadros dirigiu um bilhete ao seu secretário particular José Aparecido de Oliveira:

    “Aparecido:
    Leio num jornal que o Ministério está em crise…
    Veja se localiza para mim.
    Leio, também, que recebi, da Fazenda, um bilhete enérgico.
    Desminta. O Ministro é educado bastante, para não o escrever ao Presidente.
    E o Presidente não é educado bastante, para recebê-lo…
    Assinado – Jânio Quadros
    09/08/1961?

    Uma onda de descontentamento varreu o país e Jânio Quadros começou a descarregar sua fúria sobre o ministro da Fazenda, Clemente Mariani que, como sabemos, tinha relações de parentesco com o jornalista e dono de jornal Carlos Lacerda. Aliás, era o próprio genro do ministro, o jovem Sérgio Lacerda (casado com a filha de Clementi Mariani, de nome Maria Clara) que estava dirigindo a Tribuna de Imprensa e lhe regulava o tom dos ataques. Essa mudança na direção do jornal se deu porque Carlos Lacerda, eleito governador no novo Estado da Guanabara, teve de se afastar do cargo.

    José Dutra Ferreira , mordomo em Brasília (testemunha ocular e auditiva) Ouviu o anúncio que Jânio Quadros fez à sua mãe, no palácio da Alvorada, em plena mesa de almoço, que iria renunciar à presidência da República, em 10 de agosto de 1961.

    A revista “Mundo Ilustrado” em seu número de 12 de agosto de 1961, treze dias antes da renúncia, publicava a reportagem: “Renúncia, arma secreta de Jânio”.

    Em 19 de agosto, condecorou Ernesto Che Guevara, então ministro da Economia de cuba, com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, provocando protestos dos militares e da UDN.

    O embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, através da CIA (Central Inteligence American) e de seu Presidente norte-americano John Kennedy, estavam interessados que o “regime” de Jânio Quadros tivesse êxito no Brasil. A proposta pelo embaixador americano era o de fechar o Congresso Nacional, porque havia um perigo de uma ditadura comunista no Brasil.

    No Rio de Janeiro e em São Paulo a repercussão foi forte com as massas nas ruas, bandeiras cubanas e retratos deChe Guevara. O escândalo estourou como na Argentina, e Arturo Frondizi, uma semana depois abandonou o governo sob as ameaças da direita.

    Frondizi recebeu tamanha quantidade de ataques que antes de completar sete meses, foi também derrubado. Já,Kennedy, a quem coube o papel equívoco de invasor armado e reabilitador diplomático, foi assassinado dois anos depois, numa confabulação obscura onde as relações com Cuba foram fator de sua transcendência.

    Guevara foi convidado verbalmente a visitar o Brasil, o presidente Jânio Quadros, pelo chefe da delegação e ministro da Economia Clemente Mariani (consogro de Lacerda) No dia 19/8/61, o presidente Jânio Quadros condecorou Guevara com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, numa cerimônia improvisada no Palácio do Planalto. Ele ignorava que iria receber uma condecoração, mas também o caráter oficial do encontro. Ele não tinha como retribuir a condecoração, como é usual, e o discurso de Jânio foi breve.
    Preferiu Guevara retribuir com discurso breve, aceitando a distinção como entregue ao governo revolucionário e ao povo cubano, sem significado pessoal. Em 19 de agosto, Che Guevara é recebido por Jânio Quadros em Brasília, o qual aproveita a ocasião para atender um pedido do núncio apostólico, monsenhor Lombardi e do Papa João XXIII, para interferir na libertação de 20 padres espanhóis e do bispo de Havana, presos em Cuba. No caso dos padres, Guevara concorda com a libertação, avisando, entretanto que, dentro das regras cubanas, eles serão em seguida expulsos para a Espanha. Jânio manifesta sua opinião de que a expulsão é um assunto interno de Cuba, que só a ela cabe resolver. O Brasil defende a libertação e com esse ato considera o pedido satisfeito.
    Na vida de Ernesto Che Guevara, a inteligência e a violência se alternaram o tempo todo.

    O ano de 1963 apresentou-se agitado em toda América Latina. No Brasil crescia a organização das ligas camponesas, sob a tolerância do presidente João Goulart, um nacionalista que se apoiava cada dia mais nos esquerdistas dos sindicatos e nos intelectuais.

    Resumindo, onde quer que Che Guevara pousasse, aconteciam calamidades com consequências desastrosas, aqui no Brasil, foi condecorado por Jânio Quadros e cinco dias depois, a renuncia.
    Em represália, o governador do então Estado da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN), homenageou no dia seguinte o líder anticastrista Antônio Verona, com a “chave” do Rio. No dia 23 de agosto, Lacerda foi chamado para uma conversa amistosa em Brasília, mas a viagem só serviu para piorar tudo.

    20 de agosto prova cabal de que a renúncia não foi um gesto individual de um Presidente destemperado: a carta em que a decisão seria tornada pública estava desde 20 de agosto em poder de Horta.

    Que “razões próprias” deve ter tido o ministro da Justiça, Pedroso Horta para o açodamento da entrega do documento da renúncia? Jânio Quadros tinha o estigma da renúncia. Oscar Pedroso Horta (ministro da Justiça) não entendeu Jânio Quadros, quando não rasgou ou pelo menos não retardou a entrega do documento da renúncia. A renúncia de Jânio Quadros foi uma espécie de chantagem com o Congresso, com os militares e com as forças políticas com quem ele estava em choque.

    Ele mostrou a um grupo de conspiradores que se reuniu na casa de um industrial em Bertioga (SP). Entre os participantes do encontro estava o Presidente do Senado, Auro de Moura Andrade (PSD-SP), e o ministro da Guerra, Odílio Denys.
    24 de agosto.

    Carlos Lacerda, governador da Guanabara, faz violento ataque ao governo federal em discurso na TV. A denúncia deflagrou uma grave crise política no País, porque o vice João Goulart, que foi ministro do Trabalho de Getúlio Vargas e havia sido eleito pelas esquerdas, encontrava forte resistência entre os militares.

    No dia 30, os militares lançaram um manifesto alertando para os riscos que a posse de Jango traria, aumentando o clima de tensão. Diante do impasse, que ameaçava se transformar numa guerra civil, a saída encontrada pelo Congresso foi reformar a Constituição, alterando o regime político para parlamentarista. Jango finalmente assumiu e, depois de alguns meses, restabeleceu o presidencialismo através de plebiscito. Mas não conseguiu levar o seu mandato até o fim.

    Golbery foi o redator do “Memorial dos coronéis” (fevereiro de 1954) e do “Manifesto dos generais” (agosto de 1954), documentos que precipitaram a crise política que culminou no suicídio de Getúlio Vargas. Em outubro de 1954; renúncia de Jânio da Silva Quadros, em 1961 e a deposição de João Goulart, em 1964. E o golpe militar de 1964. O golpe de estado acabaria acontecendo três meses mais tarde, só que encabeçado pelos próprios militares. O golpe militar era um processo que estava em marcha desde 1954. Daí as “forças terríveis”, além dos Estados Unidos e do senhor Carlos Lacerda.

    Jânio Quadros, ao renunciar sepultou as esperanças do senhor Carlos Lacerda, ser Presidente da República. Um dia da caça, outro do caçador. Carlos Lacerda saltou e esqueceu de colocar a rede.
    Os militares “Memorial dos Coronéis”, através de seu articulador, Golbery do Couto e Silva e de seus signatários, demoraram, exatamente 10 anos (28 de fevereiro de 1954 a 31 de março de 1964) para colocar em prática a “revolução preventiva” que durariam 21 anos. O astuto estrategista, Golbery, sabia que Jânio sempre demonstrou desprezo pelos partidos e pelo Poder Legislativo. Ao longo de sua carreira trocou de legenda sucessivamente. Renunciando a todos e no mesmo estilo de carta que imprimiu sua marca pessoal na arte de renunciar.

    Abraços,

    Nelson Valente

  4. Erick Figueiredo says:

    Entre os que criticavam-no, estava Carlos Lacerda, seu companheiro de partido, a UDN. Vemos que Jânio conseguiu capitalizar a antipatia de seus correligionários e, ao mesmo tempo, enfrentava a oposição do PTB e do PSD, contrários à UDN e ao próprio presidente por questões de princípios antagônicos. A aproximação do Brasil com os países do bloco socialista não convenceu a oposição e afastou os correligionários.
    Some-se a isto a insatisfação das forças armadas que evitou um desembarque triunfal em São Paulo em busca de apoio popular levando o presidente à Cumbica, naquela época uma afastada base militar, dando tempo para que se consolidasse o seu afastamento do poder.
    Haveria outra opção para Jânio? Sinceramente não sei e acredito que ninguém jamais saberá.

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