Ivani Medina

No princípio era o verbo. Depois vieram as frases feitas e muita conversa fiada. Minha curiosidade pela origem da nossa cultura tem sido uma viagem por caminhos que eu nunca havia sonhado. O respeito que desenvolvemos pelos nossos mestres e figuras sábias das nossas sociedades acabou nos deixando perdidos de nós mesmo para que nos amoldássemos às expectativas alheias. Fazer o caminho de volta implica, sobretudo, em conhecê-lo, identificá-lo sem vacilação e indicá-lo aos demais. Também este é o papel da história, pois foi falsamente alegando apoio nela que nos turvaram os sentidos, e a maioria das pessoas se encontra impossibilitada dessa percepção. Por conta disso, fiquei admirado com uma declaração da conhecida historiadora cristã Elaine Pagels a respeito da repercussão em si própria dos seus estudos dos primórdios do cristianismo:

“Os eventos esboçados aqui afetam, obviamente, o modo como entendemos a nossa história cultural. Mas para os que se encontram envolvidos com essa história, como eu, desenredar algumas de suas complexidades tem consequências práticas, além de intelectuais. No meu caso, o mais difícil e estimulante na pesquisa sobre as origens do cristianismo foi desaprender o que eu achava que sabia e abandonar pressupostos que eu aceitava sem questionar.” (PAGELS, 2004, p.187)

Ah, como afetam! Especialmente àquelas pessoas que desenvolveram uma relação sentimental estreita com a fé cristã por uma vida inteira, como é caso dela. Eis a grande dificuldade dos (as) historiadores (as) cristãos nesse duelo entre a honestidade intelectual e a íntima realidade sentimental. O cristianismo que conhecemos escolheu para si o papel de vítima, o “coitadinho da história”, na verdade da estória que ele mesmo conta, enquanto a história nos revelava outro. Os cristãos se acostumaram à versão doméstica, mas quem procura acha.

No Princípio 1
Manuscrito do Mar Morto

Mais adiante, fechando o assunto, com a força de um profundo suspiro de uma crente mexida, mas ainda convicta, diz ela:

“Qualquer pessoa que tenha visto tolice, sentimentalismo, fraude ou fúria homicida disfarçadas como verdade divina sabe que não existe uma resposta fácil a esse problema. Que os antigos chamavam de discernimento de espírito. A ortodoxia tende a desconfiar da nossa capacidade de estabelecer essas distinções e insiste em fazê-las por nós. Em vista da notória capacidade que tem o ser humano de iludir a si próprio, em certa medida podemos agradecer a Igreja por isso. Muitos de nós, querendo ser poupados de trabalho árduo, aceitam de bom grado o que a tradição ensina.” (PAGELS, 2004, p. 190)

Discordo inteiramente da ilustre historiadora neste parágrafo, especialmente quanto a “notória capacidade que tem o ser humano de iludir a si próprio” a começar por afirmar que existe uma resposta fácil, sim. De tão fácil é inaceitável para os que se afeiçoaram aos albores da imaginação dos gregos antigos, dos anatolianos em especial.

“Conheça o que está diante de sua face, e o que está oculto para você ser-lhe-à revelado. Pois nada há oculto que não seja revelado.” (Sentença V, evangelho de Tomé.

Há muito venho demonstrando que para se conhecer a origem do cristianismo basta seguir as pegadas do antijudaísmo, coisa que ninguém ainda fez. Chegam a pensar que sou judeu por causa disso, mas não sou. Nem simpatizante da tradição judaica, como outros. Livre da ambivalência desse preconceito eu me sinto absolutamente à vontade nessa afirmação. Então, vamos a mais uma demonstração:

Outro aspecto importantíssimo no estudo dessa campanha difamatória contra os judeus no século I e.c., se prende especialmente às formas de expressão religiosa que se estenderam aos séculos II e III e.c. Na Antiguidade, política e religião não se separavam. O deus de Israel foi execrado como um maligno que trouxe almas ao mundo desditoso da matéria. Devia ser repudiado como o povo que o seguia. “[…] Muitas seitas pagãs desse período eram, também, violentamente antijudaicas, e as de tendências dualistas identificaram ‘o execrável deus dos judeus’ com o poder maligno de Saturno e com o Diabo.” (GRANT, 1977, p. 63).

GRANT se refere a seitas pagãs porque, certamente, o cristianismo ainda não havia se manifestado nesse dualismo antijudaico. A resultante religiosa desse confronto cultural helenístico – pois envolvia não só elementos gregos – foi o gnosticismo antijudaico, surgido imprecisamente nos primeiros séculos da era comum. Documentos antigos encontrados no Alto Egito, em Nag Hammadi, favoreceram o entendimento da ponta mais primitiva do cristianismo que passou a ser considerada herética, por não se prestar a uma religião de massa politicamente manobrável.

Não interessa aqui discorrer sobre os variados tipos de gnosticismos, que eram muitos, senão nota-lo basicamente quanto ao surgimento e consequências, porque a religião faz parte, mas não é o nosso assunto preferencial e sim o seu surgimento em via da necessidade política. Para os gnósticos o deus de Israel era o demiurgo (nome empregado por Platão para o criador). Este havia se colocado no lugar do verdadeiro Deus e dominava o mundo como rei e senhor, que agia como um comandante militar, que estabelece a lei e julga aqueles que a violam.

O objetivo filosófico dos gnósticos era o autoconhecimento, pois, segundo eles, quem se conhece, conhece a própria fonte e descobre a sua origem espiritual, pois ficou conhecendo seu pai e mãe verdadeira. “Quem busca a verdade é também quem a revela”. Aprende a rejeitar a autoridade enganosa do criador e a considerar todas as suas exigências tolices. Antes da gnose o candidato adorava o demiurgo, difundindo o seu poder. Depois, por intermédio dela e do sacramento da redenção, declara-se liberto e que não pertence mais a esfera de autoridade e juízo do falso Deus.

Ao que parece, a balança helenística estava mesmo tendendo para o judaísmo, o que justificaria uma ação tão ousada do mundo pagão, como registrou GRANT. Desprestígio maior a religião judaica não poderia encontrar, senão ver o próprio deus atingido em cheio. Alguns historiadores têm o hábito de dizer que a minha alegação não faz sentido, pois os judeus não tinham importância na época, uma vez que pouco se registrou deles. Fosse assim, como se explicariam as notícias incomodas e pouco divulgadas que merecem maior atenção?

“A hostilidade entre gregos e judeus no Egito foi intensa ? de longe a mais séria tensão inter-racial do Império. Surgido pelo menos nos primeiros anos do século terceiro a. C., o anti-semitismo pagão brotou do exclusivismo judaico e do consequente ressentimento das cidades gregas contra um povo que recusava tomar parte nos seus interesses sociais e divertimentos. (GRANT, 1977, p. 61)

Além disso, como nos tempos atuais, o anti-semitismo era estabelecido não só pelo boato vulgar mas também pela propaganda deliberada de intelectuais. Por certo, no primeiro século d.C. o sentimento antijudaico, que crescia constantemente, era, em grande escala, a obra dos escritores, sendo a maioria deles os gregos”. (JOHNSON, 1989, p. 138)

“A maioria desses intelectuais [hostis ao judaísmo] procedia de cidades gregas da Ásia Menor, da Síria e do Egito gregos: Clearco de Soli (filósofo da escola de Aristóteles), Diodoro Sículo (historiador), Queremon (historiador), Lisímaco, Apolônio Mòlon (retor), Apion (professor de literatura e escritor)entre outros tantos” (MESSADIÉ, 2003, p. 42, 446, 47, 50).

O que não tem base histórica nem científica é o acatamento do Novo Testamento como fonte a endossar o que só ele diz.

A experiência anatoliana mostrou-se mais uma vez inigualável e não pararia por aí. Foi de lá, da Anatólia ou Ásia Menor, como os romanos chamavam, berço da filosofia, que possivelmente veio o gnosticismo para espalhar-se no mundo antigo. A inteligência grega circulava o tempo todo pelas mais prestigiadas regiões naquele caldeirão helenístico: Ásia Menor, Síria, Egito nas quais o gnosticismo se desenvolveu na sua forma pagã antes de cristianizar-se.

A propósito, é bom diferenciar a gnose judaica deste gnosticismo antijudaico pagão: gnose, como já vimos, significa conhecimento. Gnosticismo genérico era um movimento religioso sincrético que prestigiava a gnose, autoconhecimento, e execrava o deus de Israel numa atitude nitidamente política. Não haveria de ser um contrassenso que judeus buscassem a gnose, o que não significa necessariamente envolvimento com um movimento sincrético que execrava o seu próprio deus. Nenhuma das fontes do pensamento judaico dos primeiros séculos como os essênios e Filon, se opôs de forma tão radical a tradição. Pelo contrário, não abandonaram o Pentateuco.

Como se não bastasse, havia concepções ditas gnósticas absolutamente insultuosas aos costumes dos judeus. “A doutrina de Basilido (Basílides) e de Carpocras (Carpócrates), chefes dos gnósticos, começava a fazer progressos, apesar da sua extravagância. Aqueles hereges sustentavam que era permitido o uso de todos os prazeres; que as mulheres deviam ser comuns; que não havia ressurreição da carne; e que o Cristo era unicamente um fantasma.” (LACHATRE, 2004, p. 55). Os nicolaítas estimulavam a sodomia.

O criador da gnose foi o príncipe indiano Sidarta Gautama (563-483 a.e.c.), o Buda (iluminado) teria descoberto por si mesmo um método capaz de conduzir o indivíduo ás profundezas da própria existência. Método que ficou conhecido como Budismo Hinayana (pequeno veículo, pois comporta apenas um). A ideia é romper o ciclo do renascimento mediante muito esforço, no sentido de se alcançar um nível de consciência íntima cada vez mais aprofundado, mais claro à razão, mais luminoso por fim. Budismo significa iluminação. Durante esse processo de iluminação é que se vai conhecendo o Eu superior, segundo seus seguidores, o único e verdadeiro mestre.

O Budismo só se tornaria religião muito tempo depois da morte de Sidarta Gautama, quando enlaçado pelos costumes de outras terras. Surge então o Budismo Mahayana (grande veículo) de caráter missionário com estátuas do Buda gordo, crenças, deuses, deusas, doutrinas, incensos etc. Entretanto, a ideia da existência do Mestre Interior ou Superior, permaneceu inalterada e imprestável à utilização política. Foi por causa disso que a porca torceu o rabo.

“A desagregação do Império selêucida e a do Império mauria permitiram a Bactriana assenhorar-se do vale do Indo, estendendo-se assim do mar de Aral até o mar das Índias. Mas desse império grego, criado em plena Ásia central, perdeu rapidamente a unidade. Indeciso entre a atração do mar, ao sul, e a do continente, ao norte, fragmentou-se a partir de 175. Os gregos que o governaram e o administraram, e repartiram entre si os seus pedaços, foram logo conquistados pela cultura hindu. Pelo mar, entretanto, manteve-se o contacto entre o reino grego das Índias e o helenismo, dando origem a uma civilização greco-búdica, que ainda resplandeceu na Ásia pela estrada das caravanas da Bactriana. Mas essa influencia marítima grega não tardaria a esbarrar na política de imperialismo econômico continental da China.” (PIRENNE, 1973, p. 100 e 101).

No século III a.e.c., como parte do intercâmbio entre gregos e hindus, um rei hindu convertido ao budismo e chamado Açoca, enviou missionários budistas ás monarquias helenísticas. Desde aquela época Alexandria recebia visita daqueles monges que despertavam grande curiosidade. Conta-se que elementos da colônia judaica local também se encantaram com eles e teria sido essa a origem dos essênios ou terapeutas do deserto, a partir de 150 a.e.c. Therapeuta seria a forma grega de Thara Puta, filho do ancião, em Pali; língua falada pelos monges budistas visitantes.

Porém a nossa historiadora faz uma estimativa mais recente desse contato budista em Alexandria. “As rotas comerciais entre o mundo greco-romano e o Oriente estavam sendo abertas na época em que o gnosticismo floresceu (entre os anos 80 e 200); missionários budistas vinham pregando em Alexandria há gerações”. (PAGELS, 1995, p. 19)

Qual um mestre budista, esse anônimo professor [gnóstico] de Rheginos prossegue explicando que a existência humana comum é a morte espiritual, mas que a ressurreição é o momento de iluminação: “é a revelação do que verdadeiramente existe, e uma migração (metábole – mudança, transição) em algo novo”. Aquele que compreender torna-se espiritualmente vivo.” (PAGELS,, 1995, p. 43). Quem alcança a gnose torna-se “não mais um cristão, mas um Cristo”. (PAGELS, 1995, p. 155)

“De acordo com o mestre gnóstico Teódoto, que escreveu na Ásia Menor entre os anos 140 e 160, o gnóstico é aquele que chegou a compreender quem éramos e quem nos tornamos; onde estávamos […] para onde nos precipitamos; do que estamos sendo libertos; o que é nascimento, e o que é o renascimento. Porém, conhecer-se no nível mais profundo é simultaneamente conhecer Deus; esse é o segredo da gnose. Outro mestre gnóstico, Monoimus, diz: Abandone a procura de Deus, a criação e outras questões similares. Busque-o tomando a si mesmo como o ponto de partida. Aprenda quem dentro de você assume tudo para si e diz,“Meu Deus, minha mente, meu pensamento, minha alma, meu corpo”. Descubra as origens da tristeza, da alegria, do amor, do ódio […] Se investigar cuidadosamente essas questões, você o encontrará em si mesmo”. (PAGELS, 1995, p. 17)

Todavia, fontes ainda mais cristãs dão outra interpretação a essa origem, que é clara quanto o caráter anijudaico procedente da Ásia Menor.

“O gnosticismo nasce após 70 nos meios judeu-cristãos messianistas da Palestina e da Ásia, com Cerinto, e de Antioquia com Menandro. A corrente asiática apresenta um caráter mais prático. Sublinha o aspecto da revolta contra a Lei. Apresenta-se como exasperação de certas tendências paulinas. Reveste certas formas amoralistas. A corrente antioquiana é mais especulativa. É ele que suscita com o Apocryphon de João, a primeira grande obra gnóstica que conhecemos. As duas correntes desenvolvem-se em Alexandria no fim do período que ora estudamos. Mas enquanto o primeiro não deve demorar a extinguirem-se com as últimas chamas do messianismo judeu, o segundo há de encontrar no ambiente alexandrino as condições para um desenvolvimento extraordinário.” (DANIÉLOU; MARROU,1966, p. 88).

“Quanto ao povo, deixava-se seduzir pelas idéias místicas representadas, desde o início do primeiro século, pela seita dos essênios, que, separados deste mundo, renunciavam à prosperidade privada em proveito do grupo se que faziam parte recomendavam a sobriedade, a castidade, a pureza dos costumes e a brandura; consideravam o celibato como um estado superior ao casamento e professavam, no plano social, que todos os homens eram iguais. No plano religioso, os essênios acreditavam na vida futura e faziam da salvação da alma a finalidade da existência. Enfim, anunciavam a próxima vinda do Messias, cuja noção se espalhara por todo o Oriente. Adeptos fervorosos da ideia messiânica, os essênios não a viram, como os fariseus, no plano nacional, porém no plano universal. O povo o esperava sob o aspecto de um homem de Deus, que pregasse e praticasse o Bem.” (PIRENNE, 1973, p. 126).

Depois das suas pesquisas dos manuscritos do Mar Morto, Quammrã, o professor James VanderKam, concluiu que em virtude dos manuscritos, ficou mais fácil enxergar que um grande número de crenças e costumes cristãos não eram exclusivos dele. Definitivamente, a crença cristã repousa mais no mito de Jesus Cristo do que nos costumes comunitários e em expectativas escatológicas alegadamente suas. (VANDERKAM, 1995, p. 219).

Quando se fala em gnosticismo judaico tenta-se reconstruir uma ponte que nunca existiu no passado entre o judaísmo e o cristianismo do NT, porque existia o de Serápis, mais antigo. A propaganda de Filon e Josefo para os essênios parece ter sido muito oportuna aos inimigos do judaísmo. O cristianismo não surgiu diretamente do judaísmo, como já havia comentado o teólogo, filósofo e historiador Bruno Bauer, no século XIX. A necessidade de o cristianismo ortodoxo aparentar-se histórico e judaico responde a uma estratégia política muito consequente. A questão é que o pudor religioso não quer que o ardil político saia na foto ao lado dele.

A ala ortodoxa cristã se organizava em escalões subordinados a bispos, padres, diáconos e leigos. O bispo ia despontando como um monarca (único governante) com poder disciplinador e juiz de leigos. Os gnósticos cristãos se opunham a hierarquia eclesiástica. Entre eles todos se reversavam nas diversas funções. Alegavam estar libertos da autoridade do demiurgo (deus de Israel) e, portanto, não aceitavam a autoridade do seu representante.

 

Especificamente falando, na segunda metade do século II, os ortodoxos, ao insistirem em “um único Deus”, simultaneamente validaram um sistema de governo pelo qual a Igreja seria governada por “um único bispo”. Portanto, a modificação gnóstica do monoteísmo foi vista como – e talvez pretendesse ser – um ataque contra esse sistema. O fato é que, quando os cristãos gnósticos e ortodoxos discutiam a natureza de Deus, eles estavam ao mesmo tempo debatendo a questão da autoridade espiritual. (PAGELS, 1995, p. 63)

A insubmissão dos gnósticos a uma estrutura eficiente de governo estava fundamentada em princípios legítimos para estes, mas absolutamente incompatíveis com aquela intenção de governo baseado na crença fabricada sob medida e imposta com crueldade e violência pela ortodoxia. O desagrado dos gnósticos quanto ao fato era manifestado sem maquilagem.

Por exemplo: o assunto da ressureição de Cristo na carne era questão fechada para a ortodoxia. Tertuliano dizia que quem negasse a ressureição na carne não era cristão. “É preciso crer porque é absurdo”, dizia ele. Já os cristãos gnósticos interpretavam a ressureição de diversas maneiras. Uma delas é que a vida sem a gnose é como a morte. Depois de o homem conhecer a si mesmo é que o seu espírito renasce. A crença na ressureição como exigia a ortodoxia era chamada pelos gnósticos cristãos de “a fé dos tolos”. A morte de Jesus seria um simbolismo para a mais importante transformação na vida de alguém.

 

“No entanto, os cristãos ortodoxos insistem que Jesus era de fato um ser humano, e que todo cristão de “reto pensar” deve tomar a crucificação como acontecimento histórico e literal. Para assegurarem-se disso incluíram no credo, como elemento fundamental da fé, a afirmação de que “Jesus Cristo padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”. (PAGELS, 1995, p. 100)

[…] Inácio afirma que “Jesus Cristo”… foi verdadeiramente perseguido sob Pôncio Pliatos, foi verdadeiramente crucificado, e morreu”. Ele se opõe veementemente aos cristãos gnósticos, a quem chama de “ateus”, por sugerirem que Cristo, para eles um ser espiritual, só sofreu e  morreu aparentemente. (PAGELS, 1995, p. 106)

Segundo Pagels, o livro Atos de João, explica que, na realidade, Jesus não era um ser humano, e sim um ser espiritual que se adaptara à percepção humana. (PAGELS, 1995, p. 98) É muito estranha esta contestação indireta da historicidade de Jesus pelos próprios seguidores, ainda que todos se valessem de uma versão comum. Claro que era para que, indiscutivelmente, todos estivessem cerrados em torno de um acontecimento histórico de tamanha importância para eles, o que não ocorria. Mesmo que defendessem outro ponto de vista, os gnósticos cristãos estariam desvalorizando a própria fé sem necessidade alguma, o que não faz o menor sentido. Essa historicidade descaradamente inventada levaria a inomináveis torturas e a morte muitos daqueles que não se submeteram a ela – os hereges.

Nesses primórdios obscuros do cristianismo, muito antes dele chegar ao poder por intermédio de Constantino, alguns argumentam que teria sido essa a causa da hierarquização da igreja e a fonte de seus muitos erros como a Santa Inquisição, Clemente romano argumentava que somente o deus de Israel, governava todas as coisas: ele é o amo e senhor que todos devem obedecer; ele é o juiz e que estabelece a lei, pune os rebeldes e recompensa os obedientes. Deus delega sua autoridade para reinar a líderes e governantes na terra, que são os bispos, padres e diáconos. Aquele que se recusa a obedecer e a dobrar-se diante dos líderes da igreja é culpado de insubordinação contra o próprio mestre divino e recebe a pena de morte. (PAGELS, 1995, p. 64)

Pelo exemplo de Tertuliano e outros, que exigem a interpretação literal da ressureição de Cristo como algo histórico, está clara a necessidade de se inventar uma historicidade fictícia para o cristianismo da parte da ortodoxia cristã, indispensável a sua pretensão política, que ainda é defendida na maior cara-de-pau no meio acadêmico.

Aí está, não só a origem da nuvem escura que pesa sobre os primórdios da Igreja, da qual reclamavam os cristãos Gibbon e Lachatre, entre alguns, que a historiadora Elaine Pagels ora ajuda a dissipar, como o porquê da sua permanência. Foi por isso que o evangelho de João quase não entrou na seleção dos quatro. Ainda bem que não estou na pele destes historiadores cristãos. Não vivo seus dramas íntimos, pois não sou cristão nem religioso. Minha paixão é pela história do cristianismo, pois esta é para mim o retrato bem acabado da Humanidade.

Referências.

DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova história da Igreja: dos primórdios a São Gregório Magno. Petrópolis: Vozes, 1966.

GRANT, Michael. História das civilizações: o mundo de Roma. Lisboa: Arcádia, 1977.

JOHNSON, Paul. História dos judeus. Rio de Janeiro: Imago, 1989.

LACHATRE, Maurice. Os crimes dos papas. São Paulo: Madras, 2004.

MESSADIÉ, Gerald. História geral do anti-semitismo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

PAGELS, Elaine. Além de toda crença : o Evangelho desconhecido de Tomé. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos gnósticos. São Paulo: Cultrix, 1995.

PIRENNE, Jacques-Henri. Panorama da História Universal. São Paulo: Difusão Européia do Livro, Editora da Universidade de São Paulo, 1973.

VANDERKAM, James C. Os manuscritos do Mar Morto hoje. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

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