Ivani Medina

Não seria sem tempo que se iniciasse um movimento em nossas universidades públicas e particulares, que abrangesse os corpos docente e discente, tendo em vista a libertação do ensino de história de todo poder ideológico, seja de que tendência for.

A ideologia é a maior inimiga da história, do conhecimento e, portanto, da própria humanidade. É capaz de tudo para se afirmar. Para ela, tudo mais é resto e vem depois da satisfação das suas caprichosas vontades. Todos os princípios que o sofrimento e a inteligência humana consagraram, na prática, são e serão pisados sem a menor cerimônia pelo ardor ideológico.

É bom que se destaque que não se trataria de um movimento “contra”, mas a favor de um conhecimento sem retoques da realidade humana no correr do tempo. Porque a boa intenção expressa em papel e pela eloquência dos discursos ideológicos nunca encontra lugar na vida real. Ninguém melhor do que a história livre para demonstrar e iluminar o percurso dessas ameças, evitando que continuem a iludir e a ceifar inúmeras vidas com perversidade e a troco de nada.

Há muito reclamo a elucidação da origem histórica do cristianismo, cuja versão falsa relatada no Novo Testamento, serviu de base histórica também para o marxismo. Essa mentira continua sendo ensinada desavergonhadamente em nossas escolas e universidades com o apoio nada ingênuo do meio acadêmico. É um péssimo exemplo que está na base da nossa cultura ocidental. Então, como exigir melhores resultados das nossas sociedades quando o mau exemplo vem de cima, do alto de uma crença que não concilia a verdade mundana com a suposta verdade divina? Ora, todas as nossas leis e costumes estão baseados nela.

Por que ensinar mentiras?
Por que ensinar mentiras?

Esse descompasso jogou a ideia de fé na lama, e obrigou a todos que viviam sob o seu domínio a chafurdarem também. Em meio a tanta complicação, fica o mais simples: de certo modo, o que vale para as crianças, vale para as massas. As crianças se orientam pelos exemplos, e não pelos sermões dos pais. Para exemplos imaginários, resultados imaginários. Para a realidade ficam as reclamações, os sofrimentos e as desilusões.

Ter que esconder que o Novo Testamento é um romance religioso, que os “fatos” que narra e seus personagens nunca existiram, não haveria de ser uma tarefa eternamente bem sucedida. Há muito se sabe que o apelido “cristão” não surgiu em Antioquia  como consta no romance: “e tendo-o achado, o levou para Antioquia. E durante um ano inteiro reuniram-se naquela igreja e instruíram muita gente; e em Antioquia os discípulos pela primeira vez foram chamados cristãos.” (Atos 11. 26).

Um trecho de uma carta do imperador Adriano (117-138) contesta essa versão para a origem do nome “cristão”.

“Queridíssimo Serviano, o Egito que tanto elogiavas parece-me ser leviano, vacilante e borboleteador entre os rumores de cada momento. Os que adoram a Serápis são cristãos. E os que dão o título de bispos de Cristo são devotos de Serápis. Não há chefe da sinagoga dos judeus, nem samaritano, nem presbítero cristão, que não seja também numerólogo, adivinho e saltimbanco. São gente altamente sediciosa, vã e injuriosa, e sua cidade é rica, opulenta, fecunda. Nela ninguém está ocioso. Uns sopram vidro, e outro fabricam papel, e todos parecem ser tecedores de linho ou têm algum ofício. Têm trabalho os reumáticos, os mutilados, os cegos e até os inválidos. O único deus de todos eles é o dinheiro, a quem adoram os cristãos, os judeus e toda classe de pessoas” (GONZALEZ, 2003, p.117).

O cristão do Novo Testamento só passa existir depois do século II e.c., portanto, tais referências utilizadas como prova da existência deste cristianismo no século I não são autênticas. Como consta na carta de Adriano, existiu um cristão mais antigo, que vinha do século III a.e.c., e nada tinha a ver com Jesus algum.

Serápis foi um deus criado por encomenda de Ptolomeu I Soter (Salvador), para unir gregos e egípcios. Do lado grego, reunia atributos de Zeus, Helio, Dionísio, Hades e Asclepio. Aproximava-se de Dionísio e das religiões de mistérios, sincretismo evidente no cristianismo do Novo Testamento, muito comentado na metade do século XX por estudioso e teólogos liberais. Do lado egípcio, identificava-se com as divindades Osíris, associada à vegetação e a vida no além, e Ápis, antiga divindade agrária representada por um touro negro.

O título “Cristo” era a forma grega para a palavra egípcia “karast” que significa ungir o defunto com óleo perfumado, em preparação para o funeral. Essa unção era utilizada no culto de Osíris, que visava manter o corpo conservado para a vida no além. Os gregos incorporaram essa prática ao culto sincrético de Serápis.

Após sua morte, Serápis tornou-se o ungido ou Karast, deus dos mortos e do submundo. Por isso, os devotos desse deus eram chamados de cristãos. O cristianismo do Novo Testamento, inexistente no século I, viria a ser a forma derradeira desse cristianismo greco-egípcio mais antigo e de origem pagã. Nada a ver com o judaísmo e a invenção de Jesus de Nazaré, o Cristo do Novo Testamento.

O cristianismo mais antigo está na história antes e durante o século I. O mais novo, nem durante. No século I, este cristianismo palestino só existiu mesmo no papel e na afirmação nada científica dos historiadores cristãos. É o próprio cristianismo quem narra a própria versão ante o pano de fundo do referido século. Como é possível que nenhum contemporâneo tenha se referido a essa versão durante cem anos, e ele não tenha deixado qualquer vestígio pelos muitos lugares por onde passou?

Segundo, o capítulo 46,1, da sua I Apologia, Justino menciona que uma das objeções contra a doutrina cristã era a de “dizermos que Cristo nasceu somente há cento e cinquenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde, no tempo de Pôncio Pilatos”. Na época de Justino, como ele próprio atesta ainda não se acreditava na historicidade da versão com Jesus Cristo, que se tornaria vitoriosa. Nem poderia, pois a crença estava sendo implantada e Justino era um dos seus propagandistas ou divulgadores.

Os sincretismos sucessivos ajudaram muito na propagação do cristianismo do Novo Testamento, surgido em Alexandria, e não na Palestina. Foi devorando cultos e crenças, como os deuses egípcios faziam aos outros deuses, que esse cristianismo foi se afirmando nas cidades do Mediterrâneo, nas quais, tais crenças e cultos haviam se fixado há muito tempo. Portanto, este cristianismo repaginado para ultrapassar o judaísmo não lhes parecia nada estranho; acostumadas que também estavam com as crenças judias àquelas cidades.

Depois que o templo de Serápis e sua biblioteca foram incendiados a mando do bispo Teófilo, em 391, sob Teodósio I, somente o cristianismo predador do século II sobreviveu com as suas invenções e à custa de uma brutal imposição apoiada pelo governo imperial. Templos pagãos ainda frequentados foram incendiados com seus devotos no interior. Foi assim que a religião que prega o “amor ao próximo”, que ama seus adversários, se iniciou nos grandes centros urbanos.

O problema é que a história não favorece em nada a imagem cristã de amor e mansidão popularmente aceita e enaltecida. Estudar essa cultura religiosa pelo veio contundente da história, e não pelo romance do Novo Testamento, como é aconselhado, é algo que recebe uma poderosa censura ideológica. Acontece que o que existe de positivo no cristianismo do Novo Testamento é muito anterior a ele, e nada tem a ver com essa mentirada toda. Não precisa dela para coisa alguma, pelo contrário, a mentira o compromete aos olhos menos ilustrados.

Para defender a falsidade que sustenta um sistema podre, que se serve da ira dos inocentes, acusam de ódio indiscriminado e de inimigos do amor e da paz, aqueles que aspiram pelo esclarecimento histórico. O crente acredita nisso, porque aprendeu que quem não é cristão como ele, não é bom. Eis o péssimo exemplo que vem de cima, das chamadas lideranças espirituais acostumadas aos benefícios que lhes são propiciados pelas mentiras oficialmente ensinadas e sustentadas. Ainda querem convencer que errados estão aqueles que buscam a verdade, pois, por vivermos em sociedade, deveriam ajudá-los a enganar o todo.

13 thoughts on “Por que ensinar mentiras?

  1. Ivani Medina says:

    Meu caro Jorge
    Pois então, a minha manifestação é justamente contra a versão falseada do vencedor, que por uma questão de herança cultural e sentimentalismo religioso se arroga substituir os fatos. Felizmente não padeci da ingenuidade de imaginar encontrar a verdade explícita em livro algum. Ando no encalço dela há décadas numa criteriosa pesquisa. Nossos renomados historiadores eram e são todos cristãos. No entanto, quando a gente sabe o que procura, os livros acabam contando.
    Um abraço.

    • Jorge Oliveira de Almeida says:

      Caro Ivani,
      você comentou: “Nossos renomados historiadores eram e são todos cristãos.” Deve ser por isso que mentem tanto: por hábito.Até o
      século XIX, quando ainda não adentráramos o Realismo, os escritores escreviam coisas fantásticas como se fossem verdadeiras. Vai daí que o hábito, aliado às conveniências, persistiu até hoje.

  2. Ivani Medina says:

    Maria Marçal
    Em primeiro lugar, obrigado pela leitura e comentário. Perdão, mas discordo da “complexidade do assunto”. A complexidade foi construída como salvaguarda de algo bem simples – a mentira. A construção do pensamento ocidental apoiou-se na mentira para impor a nova cultura. Absolutamente não se trata de imaginação, mas de evidências antigas que o poder cultural ainda tenta sofismar. Você já deu a resposta: a eloquência e a força bruta e outras mais tentaram impedir a todo custo no passado uma visão clara de tudo isto, mas agora não dá mais.
    Abraços.
    Rio de Janeiro.

  3. mariamarcal says:

    Assunto muito complexo este porque envolve anos e anos de construção do pensamento.
    Contudo, entendo que a ‘história’ não escapa de conceitos sobre o ocorrido e, neste linear, avançará sempre pelo mundo da imaginação de um ou outro que segurão a corrente do mais eloquente.

    Abraços,
    Maria Marçal – Porto Alegre – RS

    • Jorge Oliveira de Almeida says:

      Minha cara Maria Marçal,
      não considera pelo menos estranho que muito da história anterior a Cristo estejam bastante documentadas pelos cronistas da época, e de Cristo não há qualquer referência? É claro que cheguei à conclusão que JC nunca existiu, tendo sido uma criação dos homens para maior e mais rápida dominação. Concorda comigo?

  4. Ivani Medina says:

    Meu caro Jorge Oliveira de Almeida
    Por que ensinar mentiras? É a questão. Desde 2009 venho me manifestando no sentido de que o ensino de história, em todos os níveis, mostre o caminho da rua para a versão apresentada pelo Novo Testamento para a origem do cristianismo. Que esta versão seja apresentada em igrejas para quem quer seguir essa fé, não tenho nada a objetar. Mas fazer proselitismo disfarçado de história em instituições de ensino públicas e privadas num país declaradamente laico, não dá mais. O cristianismo mentiu quando se meteu a besta fazendo da história um instrumento da sua subordinação. Chega dessa palhaçada! A minha atitude nada tem a ver com a fé das pessoas em Jesus de Nazaré ou em Iemanjá. Tem a ver com o ensino e a moralização da disciplina que prezo – a história. Obrigado pelo seu comentário.

    • Jorge Oliveira de Almeida says:

      Meu caro Ivani, preza a História quem preza a Verdade, mas a história (talvez devesse escrever “estória”) é escrita pelos vencedores e pelos conquistadores (seja lá do que for, até mesmo da mente das pessoas), de modo que não devemos esperar a Verdade ao ler os livros de História. Um abraço.

  5. Jorge Oliveira de Almeida says:

    Meu caro Ivani,
    muito bom o seu artigo. No entanto, você acha que alguém vai lê-lo? Não adianta querer com erudição convencer a coruja que seus filhos não são belos. A minha esposa em poucas palavras me esclareceu porque as pessoas creem: “creem porque querem”, em outras palavras, creem porque assim se sentem felizes. As pessoas que creem não querem ter maiores conhecimentos. Querem apenas crer. É lamentável, mas é assim que funciona a mente das pessoas.
    Um abraço.

  6. Ivani Medina says:

    Rafael
    Obrigado pelo elogio e pelo seu oportuno comentário. Graças a você posso corrigir uma falha: GONZALEZ, Justo L. A Era dos Mártires. São Paulo: Vida Nova, 2003. Minhas fontes estão sempre apoiadas na literatura histórica oficial. No entanto, a sua desconfiança é fundamentada nessa história mal contada que é a origem do cristianismo. Os judeus nada têm a ver com o cristianismo. Quem conta essa versão são os gregos que os odiavam. Estranho, não? Na verdade não houve um personagem inspirador para figura de Jesus. O que passou mais próximo foi Apolônio de Tiana. O legado ao qual você se refere não proveio de um único homem, mas das experiências de muitos. Continue em contato.
    Ótimo 2013.

  7. Rafa | Arruma Blog says:

    Belas palavras. Não tenho gosto pela história e seus momentos como percebi ali, mas senti falta de algo mais concreto quanto ao documento do imperador Adriano (sem fonte). Por hora, mesmo que a fonte fosse outro blog, não me seria de grande valor histórico pois as fraudes tanto em informações quanto em imagens nos dias de hoje são questionáveis.
    Percebi que o real sentido da mentira foi e ainda é o novo testamento. Ao meu pensar, só um ato já me faz não acreditar na Igreja católica e como a comunidade judia no Brasil é pouco difundida, não há muito onde procurar cultura antiga do que nessas duas religiões, esse ato é o de guardar o que eles da Igreja católica chama de ‘segredos divinos’ ou coisas assim. Acho que a confiança nasce com as verdades em todos os sentidos.
    Outro ponto é o de haver uma ‘menção’ a um antigo cristão que nada tinha a ver com Jesus, achei interessante pois tenho um pensamento parecido. Antes de Jesus, passou alguém cuja sabedoria era tão relevante e deixou um legado que foi esquecido.

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