Na intimidade, Jânio suportava conversar sobre a renúncia, assunto explosivo se provocado em público ou em ambiente com muitas pessoas.

Um dia, aos próprios amigos, que insistiam em fazê-lo confessar algo mais do que a explicação que dava, respondeu com surpreendente calma: – A verdade sobre a renúncia vocês já sabem. Se quiserem ingressar na ficção, conversem com o Vladimir Toledo Piza, que tem mais de dezoito versões. Escolham uma delas.

Passemos a analisá-los e submetê-los à critica da razão. Comecemos pelos que são mais absurdos, por absoluta falta de consistência:

Jânio Quadros - Um dia, aos próprios amigos, que insistiam em fazê-lo confessar algo mais do que a explicação que dava, respondeu com surpreendente calma

1 – Jânio estava embriagado?

A conduta do ex-presidente durante as solenidades do dia do soldado e a altivez e postura com que passou em revista as tropas, zeram essa absurda possibilidade. Também sua firmeza irredutível em optar pela renúncia e a retidão gramatical da carta são incompatíveis com uma mente tomada pelo álcool. “Há quem diga que eu estava embriagado (quando renunciou). Eu passei sete meses em Brasília tomando ocasionalmente cerveja e vinho nacional no almoço.” – Jânio Quadros.

2 – Porque Jânio tinha a mania de renunciar de cargos, ou de ameaçar fazê-lo isto fez com que brotasse a ideia de que ele era sujeito a surtos esquizoides ou crises temperamentais. A meu ver, o que o “homem da vassoura” fazia, não passava de um jogo de cena planejado, visando obter algum tipo de lucro político. Suas renúncias ou ameaças de renúncias anteriores nunca foram para valer.

Em relação ao que se passou no dia 25 de agosto, há que se ter em mente que, conquanto Jânio tivesse se mostrado irredutível quanto a renunciar, ele debateu essa questão com seus ministros e assessores, com total equilíbrio e lucidez.

Se foi, de certa forma, vago, ao se referir genericamente as “forças terríveis”, o contexto das palavras que proferiu e o texto da missiva endereçada ao congresso, mostram, claramente, que a decisão resultou de uma longa reflexão e de um bem amadurecido pensamento. Impulsos temperamentais não ocorrem dessa maneira. Há também que se levar em conta que, ainda de madrugada, ele declarou sua intenção ao chefe da casa civil.

Destemperamentos e surtos de natureza psiquiátrica não se sustentam por tanto tempo, nem permitem que a pessoa aja como Jânio agiu, durante as solenidades militares daquela manhã. Afastadas, assim, as hipóteses absurdas, fiquemos com aquela que indica que Jânio Quadros planejou a renúncia, visando algo que pretendia alcançar, mas que não foi por ele admitido ou confessado.

Palácio do Planalto [sexta-feira], 25 de agosto de 1961 O presidente Jânio Quadros foi acordado, como todos os dias, às 5h45, pelo seu mordomo, João Hermínio da Silva, que o acompanhava desde os tempos de governador de São Paulo.

Ele lhe entregou um exemplar do Correio Braziliense, e o presidente leu alguma coisa que o irritou. Amassou o jornal com raiva, atirando-o violentamente na cesta de lixo.

Jânio Quadros - Um dia, aos próprios amigos, que insistiam em fazê-lo confessar algo mais do que a explicação que dava, respondeu com surpreendente calma

2ª Cena: Enquanto se barbeava,

pediu quase aos gritos que telefonasse para o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, e para o Chefe da Casa Civil Francisco de Paula Quintanilha Ribeiro.

3ª Cena Jânio falou bravo com Horta,

Reclamando que não haviam tomado a menor providência. Depois falou com Quintanilha, também em tom áspero. Ao desligar o telefone, ordenou ao mordomo que mandasse encostar o carro urgentemente.

Jânio Quadros - Um dia, aos próprios amigos, que insistiam em fazê-lo confessar algo mais do que a explicação que dava, respondeu com surpreendente calma

4ª Cena Deixou o Palácio da Alvorada apressadamente

E foi para o Palácio do Planalto, aonde chegou, como de costume, às 6h30, a bordo de um Chevrolet sedan, série Two-Ten, preto, ano 1957, automóvel que era utilizado por sua determinação no dia a dia desde que havia assumido o governo, dispensado a luxuosa limusine Cadillac Fleetwood 1958, adquirida na gestão do seu antecessor, Juscelino Kubistchek.

5ª Cena Após despachar rapidamente

Com o Chefe da Casa Militar, o general de brigada Pedro Geraldo de Almeida, conversou mais uma vez por telefone com Quintanilha Ribeiro.

Jânio Quadros - Um dia, aos próprios amigos, que insistiam em fazê-lo confessar algo mais do que a explicação que dava, respondeu com surpreendente calma

6ª Cena O principal compromisso do presidente naquela manhã era a comemoração do Dia do Soldado,

Que seria realizado na Esplanada dos Ministérios, junto à sede do Ministério da Guerra. Jânio chegou ao local por volta das 8h em uma limusine Cadillac 1959, não menos luxuosa, pertencente ao Ministério das Relações Exteriores, mas comumente utilizada pela presidência da República em solenidades oficiais.

7ª Cena Ao descer do veículo foi recebido com honras militares

Pelo titular ministro da Guerra, marechal Odylio Denys, acompanhado pelos ministros da Marinha, almirante Silvio Heck, e da Aeronáutica, brigadeiro Gabriel Grün Moss.

8ª Cena Passou em revista as tropas do Batalhão da Guarda Presidencial

Que estavam perfiladas, depois condecorou com a Ordem do Mérito Militar as bandeiras de vários regimentos de Infantaria e de Cavalaria do Exército brasileiro, e assistiu à solenidade de entrega de medalhas a diversas autoridades civis e militares, entre elas o seu chefe da Casa Civil, Quintanilha Ribeiro, o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, o arcebispo de Brasília, dom José Newton, e o prefeito de Brasília, deputado Paulo de Tarso Santos.

9ª Cena Depois do desfile do contingente militar

E sobrevoo de aeronaves da Força Aérea Brasileira, encerrando o evento, o presidente, sorrindo, entrou no veículo oficial e retornou ao Palácio do Planalto.

Jânio Quadros - Um dia, aos próprios amigos, que insistiam em fazê-lo confessar algo mais do que a explicação que dava, respondeu com surpreendente calma

10ª Cena Jânio Quadros tinha uma aversão profunda pela classe política e,

Embora em desvantagem no Congresso, sobretudo na Câmara Federal, nada fez para melhorar sua base de apoio.

Nelson – O senhor acredita na autoridade de Carlos Lacerda?

JÂNIO QUADROS:- “Ninguém nunca atribuiu a mim, diretamente, qualquer veleidade ditatorial. O sr. Carlos Lacerda fez acusações de madrugada, na calada da noite, enquanto eu dormia tranquilamente no Palácio”.

Nelson – O senhor não ouviu o pronunciamento dele?

JÂNIO QUADROS:- “Eu o li no dia seguinte nos jornais de Brasília. Tratava-se de uma vasta conspiração que me passara inteiramente ignorada. O Congresso transformou-se em Comissão Geral de Inquérito, figura inexistente no Direito Constitucional. Mesmo de madrugada essa Comissão já intimou o primeiro de meus ministros, e o intima para o dia seguinte e o intima sem o questionário a que devia responder, como a lei determinava. Ministro nenhum poderia ser questionado a não ser para responder um questionário previamente estabelecido. Ministro nenhum podia ser convocado com data certa! O Ministro é que escolhe a data”.

Nelson Isso foi na manhã do dia?

JÂNIO QUADROS:- “Foi na madrugada do dia 25 de agosto. Então havia o propósito nítido de me pôr de joelhos. Nítido! Não havia dúvida nenhuma, até por que se murmurava nos corredores da Casa que outros ministros se seguiriam e que minha própria esposa, presidente da Legião Brasileira de Assistência, seria também convocada, (pausa para todos perceberem a gravidade da situação).Reuni Oscar e os Ministros militares para lhes dizer: “Que me sugerem?” Eram oito e meia da manhã e eu ainda ia à cerimônia do Dia do Soldado. Fui, condecorei bandeiras, ouvi o hino, já estando de decisão tomada e declarada a todos eles”.

Nelson – Quais foram as sugestões que eles deram?

JÂNIO QUADROS:- “Houve várias sugestões e não desejo individualizar. A dominante era fechar o Congresso”.

Nelson – O senhor tinha poderes para isso.

JÂNIO QUADROS:- “Força eu tinha, poderes não”.

Nelson – Naquela época não podia declarar estado de sítio?

JÂNIO QUADROS:- “O estado de sítio é votado pelo Congresso. O presidente declara, mas o Congresso é que vota”.

Jânio Quadros - Um dia, aos próprios amigos, que insistiam em fazê-lo confessar algo mais do que a explicação que dava, respondeu com surpreendente calma
Jânio Quadros e Leonel Brizola

 

Nelson- Isso antes? O senhor gostou da sugestão de fechar o Congresso?

JÂNIO QUADROS:- “É claro que senti tentação pois aquele Congresso não me merecia o mínimo respeito. Havia nele figuras eminentes, mas quem o dominava eram os políticos profissionais, figuras pouco escrupulosas e muito discutíveis que eu conhecia de longa data. Alguns com cadeiras cativas obtidas à base de focos de ignorância mantidos pelo coronelato, explorando demagogicamente os trabalhadores, iludindo-os permanentemente. Ao verem surgir assuntos vitais para os trabalhadores — a liberdade sindical, o imposto sindical, a reforma agrária, o voto do analfabeto – recuavam de pronto e espalhavam confusões para que os projetos dormissem nas gavetas. Interferiam até na ordem econômica e financeira crivando o orçamento da União com emendas, todas elas de despesas sem indicar nenhuma fonte para a obtenção de recursos. Como cumprir a lei era inteiramente, impossível a possibilidade de fechar o Congresso me passou pela cabeça. Mas havia algumas particularidades que me fizeram pôr a ideia de lado sumariamente, não chegando nem a exumá-la. isto é, não aprovei essa sugestão”.

Nelson – O senhor teria o apoio de seus ministros militares?

JÂNIO QUADROS: – “Sim, teria sim. Aqui, ali e acolá tenho ouvido que nem sempre procederam comigo com a elegância desejável depois da renúncia. Se não todos alguns, mas até aquele momento foram absolutamente perfeitos, não podendo fazer nenhum reparo. Havia problemas também no Nordeste. Sim, estou convencido de que isto também deve estar presente na consciência dos que me fazem críticas. Existem interesses políticos próprios e divergentes quase todos empenhados em arruinar-me para a posteridade, esquecidos de que disponho da melhor documentação que se possa imaginar. A frente dessa luta e desse derramamento de sangue eminentes eu lhes disse que não havia nascido Presidente, mas havia nascido livre. Apanhei um pedaço de papel e escrevi o documento da renúncia”.

Nelson – Pelo que o senhor contou…

JÂNIO QUADROS:- “Há instantes em que é preciso tomar uma decisão. As pontas do meu dilema eram: fecho o Congresso ou me deixo cair de joelhos. No momento em que caio de joelhos desapareceu a autoridade que o povo me emprestou! Lá sigo eu para a velha política das capitanias e dos feudos: devo entregar o Ministério da Fazenda a um grupo, o Ministério da Agricultura para outro, o IBC para um terceiro, o Ministério da Viação para um quarto, o Ministério do Trabalho para um quinto… Assim eu me acomodo e governo cinco anos. Saio daqui com a pior de todas as imagens, porque então sim terei frustrado todas as minhas ideias reformistas e todas as esperanças que o povo depositou num governo limpo, corajoso, independente e honrado! Governo sério! Governo que não furta e não deixa furtar! Governo no qual não entra congressista ou homens influentes no Banco do Brasil exceto pelos seus méritos! Eu era um homem tranquilo em todos os setores”.

Nelson – Chamada de “espórtulas constrangedoras”?

JÂNIO QUADROS: – “Eu só tomei conhecimento disso (que a Câmara ia transformar-se em Tribunal Regional de Inquérito) quando cheguei ao Palácio, cerca das sete horas da manhã. Então tinha duas hipóteses: 1) fechava o Congresso, o que seria fácil, mas teria consequências imprevisíveis. 2) renunciava ao poder, já que tinha tido a minha autoridade alcançada. Cair à frente do Congresso Nacional de joelhos eu nunca faria, porque significava abrir o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal à voracidade da politicalha.”

 

Nelson – O que é espórtulas constrangedoras?

JÂNIO QUADROS: – “É só conferir! Enviei ao Congresso os projetos de lei antitruste, a lei de limitação e regulamentação da remessa de lucros e royalties, e a pioneira proposta de lei de reforma agrária. Naturalmente nenhum desses projetos jamais foi posto em votação pelo Congresso – hostil a meu governo – que os engavetou, uma vez que eu recusava a contribuir com o que chamava de espórtulas constrangedoras que os congressistas estavam acostumados a exigir para aprovar Leis de interesse da nação”.

Nelson – Sua renúncia não teria criado condições para o regime de exceção?”

JÂNIO QUADROS:- “Pois sim, sempre sou o responsável. Não sei porque não me culpam também das caravelas portuguesas! Já e já vão me ver à beira do Ipiranga sendo o culpado da independência deste país. Ou então culpado pelo 15 de novembro de Deodoro, ou do movimento de 30. Sempre, sempre sou culpado, e nem respondo mais a essas críticas. Já não tem significado para o povo. Tenho uma pretensão e convido-os a conferi-la: estou inteiramente restituído ao povo de São Paulo. Que ninguém suspenda a proibição que tenho de candidatar-me que é vitalícia, como sabem, indo comigo até o túmulo. Meus direitos políticos estão restituídos pela metade: posso votar, mas não posso ser votado, uma disposição transitória, mas constitucional. Por contágio isso acontece a minha esposa também. Mas que ninguém corrija ou levante essa proibição”.

Nelson – Frente Ampla? Lacerda?

JÂNIO QUADROS:- “Não sei o que o trazia a minha casa. À minha casa. Sem que eu o tivesse provocado ou o tivesse visitado no Rio de Janeiro. Só o vi no Rio numa conferência de governadores, presidida por mim. Não sei. Certa vez o Carlos apareceu no Palácio do Alvorada para conversar comigo. Era urgentíssimo, mandei até um avião buscá-lo. Pedira audiência à Eloá, minha esposa. Era urgentíssimo, sentou-se à minha frente e não disse nada. Mas nada mesmo. Tinha apenas o problema financeiro do filho, ao que respondi: “Mas você vem conversar comigo? Clemente Mariani, o Ministro da Fazenda, não é sogro do seu filho?”

Nelson – O MPJQ estava se dirigindo a esse militarismo que tentara impedir a posse de Juscelino e que continuaria existindo?

JÂNIO QUADROS:- “Para ser leal e honesto: não. Não tenho razões para fazer festa aos militares ou temê-los. Devem ter consciência cívica, cuidam da sua vida, e eu cuido da minha. Nunca tive nenhum problema de nenhuma natureza com os militares”.

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