A Desexistência 1

Ivani Medina

 

Desexistência é uma palavra que não existe, mas passa existir só para contar uma história.

A vida cansa. O que mais desgasta nela é a busca da coragem para continuar. Elsa já havia pensado em dar fim a tudo algumas vezes, mas desistiu de todas pelo mesmo motivo. Sabia que o instinto de conservação era contra e desconhecia motivos dele que até os animais se submetem. Liquidar-se é um ato sem volta e Elsa temia o que poderia pensar no meio do irreversível e inevitável caminho. A diferença entre a escolha e a fatalidade é muito grande.

Fosse possível desexistir Elsa não estaria mais aqui. Algo muito diferente de suicídio, morrer daquele modo perturbador impregnado de responsabilidade sobre os que ficariam. A desexistência não dói nem deixa vestígios. Ao atuar no presente, apaga todo o passado, as dores próprias e as de muita gente. Sua mãe não a teria parido, o marido não a teria conhecido, seus filhos não teriam existido. Sem recordações, sem tristezas e dores. Uma solução limpa. Consolo de peitoril de janela enquanto a vida passava lá embaixo.

Esses momentos de depressão não podiam demorar muito, pois as obrigações a aguardavam. Tinha ainda uma filha pequena que precisava muito dela. Uma filha que um dia teria uma filha pequena que também precisaria muito dela. Perguntava-se qual seria o sentido daquela brutalidade que as mulheres silenciosas conhecem muito bem. Imaginou que se tivesse um botão que bastasse ser apertado para que se desexistisse, a fila para apertá-lo serpentearia vários quarteirões da cidade e o mundo ficaria uma beleza.

Elsa lembrou-se de que, usando o eufemismo da anulação do ego, o budismo prega a auto extinção. Portanto, não estava pensando em absurdo algum. Desde a adolescência ela pressentia que a vida se dava em meio a uma grande mentira. As mentiras menores eram claramente perceptíveis e em certo momento pensou não se casar nem ter filhos, mas acabou levada pela vida e os instintos falaram mais alto. Raríssimas resistem.

Na ocasião, Elsa desconhecia que no século II, em regiões da Ásia Menor, da Síria e na cidade Greco-egípcia de Alexandria, alguns chamavam o casamento de “erva amarga” e a procriação era considerada um erro, por trazer mais gente para sofrer no desditoso mundo da matéria. Estes faziam parte da seita dos gnósticos e a isto chamava se encratismo. Juntando o fato à aspiração budista, Elsa acabou percebendo que não estava sozinha nas suas suspeitas. Seus sentimentos e pensamentos faziam sentido.

Evidentemente, alguma coisa muito estranha estava por trás do surgimento da espécie humana. Muitas lendas fantasiosas foram inventadas para encobrir o episódio e dar prosseguimento à vida com este fato protegido do conhecimento mundano. Tal revelação destruiria a estrutura de gerenciamento montada com base no imaginário. Certa vez, Elsa perdeu a paciência com duas mulheres testemunhas de Jeová que a abordaram na rua e as pôs para correr.

Existem momentos que o nível de humor baixa muito e esses momentos tornaram-se frequentes na vida dela. O ambiente doméstico estava ficando difícil quando resolveu buscar ajuda profissional. A terapeuta, a princípio, entendeu-a como mais um caso de mulher madura cansada da dura rotina doméstica e com o casamento descendo a ladeira. Porém, na medida em que as sessões avançavam o atendimento a Elsa passou a ganhar maior interesse profissional. Compartilhar dos pensamentos daquela paciente era uma oportunidade singular.

Quando se viu no peitoril da janela, aquela paciente havia saltado para dentro de si. Naquele momento crítico encontrou respostas que ela como uma profissional ilustrada buscara na serenidade das bibliotecas sem sucesso. Elsa havia redescoberto um mistério de uma forma criativa e terapêutica, sem saber. Pensava a terapeuta quando o táxi parou diante do prédio do seu consultório. Teve um desentendimento com o motorista que quis roubar-lhe no troco.

– Ah! Se eu pudesse desexistia esse cara.

.

Ivani de Araujo Medina é um Homem com a percepção do descompasso existente entre a história e o favorecimento ideológico ao cristianismo.

.

Clique aqui e leia mais artigos de Ivani de Araujo Medina

.

.

Para você configurar seu avatar com sua foto, para que esta fique visível nos comentários, siga os três passos:

1. Vá até www.gravatar.com, clique em SIGN UP.

2. Adicione o e-mail que você utiliza em seus comentários aqui.

3. Complete o cadastro.

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.