Praça da Paz Celestial - Governantes Modernos Continuam em Silêncio 3
Por: Xiyun Yang e Andrew Jacobs
O Massacre Completou 22 anos.

Ele foi responsável por evitar um banho de sangue ainda maior em 4 de junho de 1989. Um dos dois líderes que negociaram a retirada dos manifestantes da praça da Paz Celestial, o professor Zhou Duo, 62, continua a pagar por sua participação nos protestos.

Zhou ficou preso por um ano e nunca mais trabalhou foi aposentado compulsoriamente da Universidade de Pequim, onde lecionava sociologia.

Tentou várias vezes uma reintegração ao cargo e vê as portas se fecharem quando seu passado militante é descoberto.

Ele tentou fazer uma greve de fome em um parque da cidade hoje, para exigir do governo investigação de responsabilidade de quem mandou os tanques para a praça e, segundo ele, para exigir sua liberdade de expressão. Mas ficou em prisão domiciliar desde sábado, poucos dias depois de falar comigo e foi retirado de Pequim pela polícia. Talvez só volte na semana que vem.

DESPOLITIZADOS

Já tivemos autoritarismo nas dinastias imperiais, totalitarismo na era de Mao, e voltamos ao autoritarismo. O país mudou muito nos últimos 30 anos, é mais livre. Se você não mexe com o governo, você é livre. Ninguém controla você se não criticar o governo. O governo quer que os cidadãos foquem mais em seus próprios interesses, em suas carreiras e fiquem longe da política. A estratégia funcionou. A repressão de 4 de junho deu uma mensagem poderosa de quanto é perigoso se meter com política aqui. Muita gente foi presa. A propaganda, a educação e a mídia fizeram o resto. Como alternativa, há muitas maneiras de se ficar rico neste país. E os governos e empresas ocidentais também cooperaram para o esquecimento.

JANTAR COM A POLÍCIA

A polícia me visita com frequência, mas posso viajar ao exterior e pela China.

Na semana passada, fui convidado a jantar por agentes de segurança do meu bairro. Os policiais pediram gentilmente que eu não desse entrevistas a jornalistas estrangeiros dentro do meu apartamento, por isso estou conversando com você neste café. “Você deve estar muito ocupado ultimamente”, brincou um dos policiais.
TANQUES

Éramos cerca de 5.000 pessoas na praça na noite de 3 de junho. Uma semana antes, o número foi encolhendo quando as pessoas começaram a notar que os militares invadiriam o centro de Pequim. O massacre não aconteceu na praça, eu estava lá. Os tanques e os militares foram matando nos bloqueios nas entradas da cidade e nas avenidas rumo à praça da Paz Celestial. Começamos a ouvir tiros às 2h da manhã.

SEM NEGOCIAÇÃO
Às 3h da manhã, nós éramos quatro professores e tínhamos que convencer os estudantes a deixar a praça. Liu Xiaobo [autor de um manifesto pró-democracia em dezembro, preso desde então] e eu fomos falar com Chai Ling, a líder dos estudantes. Ela se negou a nos ouvir e disse que não entregaríamos a praça de graça. Havia civis armados, ameaçando atirar quem quisesse abandonar a praça, “os traidores”.

Queríamos pedir pelos alto-falantes para os estudantes se retirarem, recolher e entregar as armas e depois negociar com os militares. Todas as luzes da praça se apagaram às 4h.
INSTANTES FINAIS
Não conseguimos nada disso, então pedi que Hou Dejian me acompanhasse a negociar com os militares. Ele era um cantor famoso, não teriam coragem de atirar nele. Pedimos carona a militares que tinham uma van. Eram três da manhã, escuridão total, nunca senti tanto medo na minha vida. Não sei se voltaria com vida. Parecia que caminhava rumo ao inferno.

Os militares disseram que só precisariam negociar com os superiores. Não havia mais como parar os tanques. Deram meia hora para que nos retirássemos.

Deixei a praça com outros amigos às 6h da manhã, vários grupos estavam saindo pelo sudeste da praça. Havia corpos e sangue na avenida. Pelos meus cálculos, morreram mil pessoas. Da praça, fui para a minha casa. Fui preso no caminho.
NÃO SÓ DEMOCRACIA
Estudantes queriam liberdade, democracia, reforma universitária. Os mais jovens pediam mais fundos para as universidades, os mais velhos reclamavam de inflação, de desemprego e de corrupção, que era apenas uma pequena fração da que acontece hoje.

Não era governo versus estudantes. Havia professores, médicos, funcionários públicos, idosos. E o governo estava dividido. O secretário-geral, Zhao Ziyang, queria mais reformas, e a velha guarda queria acabar com o protesto. O grupo mais radical dos estudantes, liderado por Chai Ling, também não queria conversa.

DERROTA MODERADA
Os dois grupos moderados perderam força, e a linha dura dos dois lados prevaleceu. E veio a tragédia. Estudo agora por que, na história da China, os moderados sempre perdem.

Na cultura política chinesa, consenso e negociação são vistos como covardia, fraqueza.


Ex-ativistas ainda esperam que a verdade virá à tona


Duas décadas após o massacre na Praça Tiananmen em Pequim, o evento permanece um tabu na China. Os ex-ativistas pró-democracia estão espalhados por todo o mundo e esperam que a verdade sobre o que aconteceu naquele fatídico 4 de junho venha algum dia à tona.


Quando o sangue foi lavado do asfalto e as esperanças de uma China mais livre e justa se dissiparam, Han Dongfang montou em sua bicicleta e deixou a cidade. Era 4 de junho de 1989, o domingo em que o Partido Comunista chinês removeu os manifestantes da Praça Tiananmen de Pequim e, segundo os números oficiais, atirou contra 319 deles. Outras fontes citam até 3 mil mortos.


O eletricista ferroviário de 25 anos tinha se dedicado a uma missão especial. “Eu queria percorrer o país e falar com operários e produtores rurais”, diz Han. Cerca de um mês antes, seus amigos anunciaram, na Praça Tiananmen, que o tinham escolhido como porta-voz de seu sindicato independente.


Dez dias depois, em algum lugar na província de Hebei, ele viu sua foto na televisão – como um “agitador e contrarrevolucionário”, sendo procurado pelas autoridades. Han ficou chocado, mas se recordou da promessa que fez aos líderes do Sindicato Autônomo dos Trabalhadores de Pequim antes de ser nomeado seu líder. “Se chegar minha hora de ir para a prisão, eu não vou esperar que me peguem, mas vou me entregar.” Han montou em sua bicicleta e voltou para Pequim, onde se apresentou na sede da polícia – e foi enviado para a prisão pelos 22 meses seguintes.


Por quase sete semanas na primavera chinesa de 1989, estudantes ocuparam a Praça Tiananmen, onde fizeram manifestações em prol de suas próprias organizações independentes e contra autoridades corruptas do partido. O que começou como um movimento de protesto inofensivo se transformou em uma revolta contra as pessoas no poder – até que os membros idosos do partido que cercavam o patriarca do Partido Comunista, Deng Xiaoping, lembraram de algo que o ex-líder chinês Mao Tsé-tung escreveu: “O poder político vem do cano de uma arma”. O secretário-geral do Partido Comunista, Zhao Ziyang, um homem que poderia ter sido o Gorbachev da China e que se opunha fortemente ao uso de força militar, foi primeiro repreendido e depois colocado sob prisão domiciliar.

 

‘Ímpeto para reforma’



Os protestos “não eram uma ameaça ao nosso sistema político”, disse Zhao antes de sua morte em 2005, após passar 16 anos sob prisão domiciliar. Ele até mesmo acreditava que os protestos foram úteis, e que podem ter dado à China um “ímpeto para reforma, até mesmo mudança política”.


O livro de memórias de Zhao, intitulado “Prisioneiro do Estado”, gravado secretamente em 30 fitas e contrabandeado para fora do país, foi publicado postumamente nos Estados Unidos e Hong Kong. Ele oferece um raro vislumbre do funcionamento interno do Partido Comunista da China. Zhao estava em sua casa, não distante da Praça Tiananmen, quando se desenrolou o banho de sangue. Ele escreveu: “Na noite de 3 de junho, enquanto estava sentado no pátio com minha família, eu ouvi fogo pesado. Uma tragédia que chocaria o mundo não foi impedida e agora estava acontecendo”.


O que aconteceu na Praça Tiananmen foi marcado a ferro na memória coletiva do mundo, completa com imagens inesquecíveis do acerto de contas brutal de Pequim com os críticos indefesos do regime. Quando os tanques entraram na cidade vindos do oeste, os manifestantes já estavam exaustos pelo calor e por uma greve de fome. Algumas poucas mangueiras de incêndio bastariam para expulsá-los da praça.


A China se tornou um país diferente desde então. O Partido Comunista concedeu aos chineses liberdades pessoais e econômicas antes desconhecidas. Mas um tabu ainda paira sobre a data de 4 de junho. Ninguém foi responsabilizado pelo massacre. Os livros oficiais de história às vezes mencionam a data, mas quando o fazem é ligada a um “incidente”. Muitos jovens nem mesmo sabem o que aconteceu no coração de Pequim em 1989, porque tanto seus pais quanto seus professores não dizem nada a respeito do massacre.


Ativistas de direitos humanos em Hong Kong estimam que cerca de 30 pessoas permanecem na prisão como “líderes” e “arruaceiros”. Das pessoas-chave restantes espalhadas pelo mundo, muitas se recolheram na vida privada e algumas se tornaram religiosas.

Casas de chá e oficinas



O eletricista ferroviário Han Dongfang, que atualmente mora em Hong Kong, contraiu tuberculose na prisão e perdeu um pulmão. Ele posteriormente foi autorizado a viajar para os Estados Unidos para tratamento, após líderes sindicais americanos terem se unido em seu apoio. Ele não está mais disposto a falar sobre seu tempo na prisão. “Aquele capítulo da minha vida acabou”, ele diz.


Han, um homem com traços delicados e vestido de forma casual mas elegante, fala bem inglês. Ele está sentado em um escritório na Jervois Street, em Sheung Wan, um bairro agitado de casas de chá, oficinas e lojas estreitas. Impedido de voltar para Pequim, Han trabalha para seu país em Hong Kong. Seu “China Labour Bulletin” informa as condições nas fábricas, em canteiros de obras e nas minas na República Popular. Ele apresenta um programa da Rádio Ásia Livre, fala ao telefone com membros de sindicato na China sobre seus direitos e assegura representação legal.


O ex-revolucionário se tornou um homem dedicado a pequenos passos. “Não há sentido em tentar voar quando não se tem asas”, ele diz. Ele abandonou a idéia de estabelecer um sindicato independente na China. “Meu sonho é um sistema que permita a negociação entre aos trabalhadores e empregadores. Sindicatos independentes então se desenvolveriam automaticamente.”


O sacrifício dos estudantes valeu a pena? “Em 1989, eu nunca ouvi falar de greves”, diz Han. “Elas são comuns hoje. Foi o início e temos que continuar.”


Wu’er Kaixi, 41 anos, também fez parte do movimento de protesto de 1989. Um membro da minoria uigur, ele estava estudando para se tornar professor na época. Após a morte do popular ex-líder do partido, Hu Yaobang, em meados de abril de 1989, Wu’er e outros estudantes formaram a União Autônoma dos Estudantes de Pequim.

Um mês atrasado



Foi um passo extraordinariamente ousado na época. Após uma greve de fome, e ainda usando as roupas hospitalares, ele apareceu no Grande Salão do Povo, onde o primeiro-ministro Li Peng estava se encontrando com os estudantes enfurecidos. Quando o primeiro-ministro pediu desculpas pelo atraso, Wu’er o interrompeu rudemente, dizendo: “O senhor não está apenas cinco minutos atrasado, está um mês inteiro”. Ele agora vive em Taiwan, onde ele e sua esposa taiwanesa têm dois filhos. Wu’er, que agora tem um passaporte taiwanês, engordou e agora corta o cabelo mais curto.


Mesmo 20 anos depois, o Partido Comunista ainda o pune por ter humilhado um alta autoridade diante de câmeras ao vivo. Os pais de Wu’er não são autorizados a deixar a China. Eles nunca viram seus netos, exceto em fotos, e a única comunicação com eles é um telefonema ocasional pela Internet. O próprio Wu’er, apesar de ter frequentado uma universidade americana, nunca realmente conseguiu se estabelecer profissionalmente, apesar de agora trabalhar para uma empresa de investimentos americana.

‘Nós queremos a verdade’



Pouco antes do avanço das tropas em 4 de junho, diz Wu’er, um dos filho de Deng Xiaoping enviou para ele uma mensagem para alertar que os protestos terminariam em derramamento de sangue. “Eu perguntei a ele: ‘O que você pode nos oferecer se nos retirarmos da Praça Tiananmen?'” Ele não obteve resposta.


Todavia, ele tentou convencer seus colegas a deixarem a praça, mas sem sucesso. Após o massacre, Wu’er fugiu para o sul, onde uma rede de dissidentes e empresários conseguiu levá-lo para Hong Kong. De lá, ele viajou para os Estados Unidos.


Wu’er planejava se encontrar com ex-ativistas em Washington às vésperas do 20º aniversário do massacre da Praça Tiananmen nesta semana. Ele nunca abandonou seu sonho de promover reformas políticas na China: Ele disse: “Não é possível viver no exílio sem esperança”.


Enquanto isso, em Pequim, a ex-professora de filosofia Ding Zilin tenta manter viva a memória do massacre. Apesar de seu cabelo grisalho, ela se move com agilidade e elegância. A professora de 72 anos é a mais proeminente das “mães de Tiananmen”. Mesmo hoje, ela luta para conter as lágrimas quando fala sobre os eventos.

‘Viveu como um homem de verdade’



Ding, que vive no noroeste da capital chinesa, ainda é autorizada a receber visitantes, mas nem sempre é autorizada a deixar seu apartamento. Ela parece exausta e preocupada com seu marido, que está doente. “Em 26 de outubro do ano passado, a polícia realizou uma batida repentina em nosso apartamento. Depois daquilo meu marido teve um ataque cardíaco e ficou em coma por dois dias.” Uma pintura a óleo de seu filho, Jiang Jielian, está pendurada na parede. Ele era um estudante de 17 anos quando morreu. Uma foto o mostra segurando uma placa nas mãos que diz: “Vocês cairão e nós permaneceremos”. Uma urna de madeira contendo suas cinzas se encontra sob a foto. O pai gravou na urna: “Neste breves 17 anos, você viveu como um homem de verdade”.


Na noite de 3 de junho, Jiang Jielian e alguns poucos amigos foram de bicicleta até a Praça Tiananmen. Diplomatas, jornalistas, policiais e professores já tinham se juntado ao movimento estudantil àquela altura, que não mais podia ser caracterizado como uma rebelião de jovens encrenqueiros, como o Partido Comunista continua insistindo até hoje.


Ding ainda era um membro dedicado do partido àquela altura. Mas em 4 de junho, quando as autoridades do partido se recusaram a divulgar os nomes das vítimas e as circunstâncias de suas mortes, ela e seu marido deram as costas ao Partido Comunista. “Nós queremos a verdade. Nós queremos indenização. Nós queremos que os responsáveis sejam julgados”, ela diz. Ela publicou três livros, documentou meticulosamente as vidas das muitas vítimas e, juntamente com outras mães, apresentou repetidas petições à liderança do partido.


“O papel da China se tornou mais forte no mundo nos últimos anos”, diz Din. Infelizmente, ela acrescenta, o governo agora deve dar menos atenção às críticas do exterior, especialmente desde que a campanha de educação patriótica teve início em 1989 e agora está dando frutos. Os estudantes de hoje, diz Ding, declaram sua solidariedade ao Partido Comunista quando, como aconteceu recentemente durante os Jogos Olímpicos, as críticas estrangeiras se tornam particularmente fortes. Ela está decepcionada com a nova geração. “Eles só se preocupam consigo mesmos e são materialistas. Eles boicotam bens japoneses, mas fazem fila diante do consulado americano para obtenção de vistos para a América.”


Agentes da inteligência ficam espreitando diante de seu prédio. Um deles, que grava em vídeo os visitantes, é jovem e tem uma leve semelhança com o filho de Ding. Ele bem que poderia ter sido um daqueles que estavam protestando na Praça Tiananmen há 20 anos.


Andrew Jacobs



Ensopado de suor, com o coração em disparada, Chen Guang desceu a escadaria do Grande Salão do Povo da China e apontou o seu fuzil automático para a multidão de estudantes que ocupavam a Praça da Paz Celestial. Chen, à época um soldado de 17 anos que morava no interior, e os seus colegas tinham acabado de receber ordens terríveis: limpar o coração simbólico do país, mesmo que isso significasse derramamento de sangue.


“Nos garantiram que não haveria consequências legais se abríssemos fogo”, recordou Chen durante uma entrevista na última terça-feira (2). “A minha única esperança era que os estudantes não resistissem”.


Vinte anos após as tropas chinesas terem aberto caminho a tiros no centro de Pequim, matando centenas de pessoas e ferindo muitas outras, Chen forneceu uma descrição rara da operação militar repressiva que restabeleceu a supremacia do Partido Comunista após seis semanas de protestos de massa. Uma operação que, a seguir, para a maioria dos chineses, desapareceu dos registros em uma campanha oficial para apagar o episódio da memória.


Falando publicamente pela primeira vez – e desafiando as autoridades de segurança que ordenaram que ele permanecesse calado – Chen explicou como, em 3 de junho, os soldados do 65º Grupo do Exército, usando roupas civis, infiltraram-se secretamente no Grande Salão na borda oeste da Praça da Paz Celestial. À meia-noite, com cinturões de munição cruzados sobre o peito, eles enfrentaram os manifestantes. O ar estava repleto dos cantos de protesto dos estudantes e do som de disparos de armas de fogo. “Posso assegurar que não atirei em ninguém”, afirma ele.


Atualmente ele é artista e também, até certo ponto, um contestador, que mora na periferia de Pequim. Chen diz que passou os 20 anos seguintes suprimindo as memórias daquele dia. Mas no ano passado ele começou a trabalhar em uma série de pinturas baseadas em centenas de fotografias, tiradas a pedido da sua unidade militar quando ele encontrava-se na praça. Elas incluem imagens embaçadas de manifestantes invadindo um ônibus público, estudantes exuberantes fazendo uma passeata com faixas pró-democracia e soldados destruindo em fogueiras os acampamentos abandonados.


“Durante 20 anos eu tentei sepultar esse episódio, mas quanto mais velho eu fico, mais essas coisas emergem”, explica ele, enquanto fuma um cigarro atrás do outro no seu apartamento. “Creio que chegou o momento de compartilhar as minhas experiências e a minha verdade com o resto do mundo”.


Ao tornar públicas as suas experiências através da sua arte, Chen corre o risco de provocar as autoridades, que estão ansiosas por suprimir o debate sobre o incidente e apagar o 4 de junho da memória pública. Nas últimas semanas, à medida que se aproximava o aniversário da operação repressiva, a polícia deteve dissidentes que ela temia que pudessem atrair atenção para o 4 de junho. Na primavera passada, Zhang Shijun, um ex-soldado do norte da China, foi preso após ter dito à agência de notícias “Associated Press” que se arrependia do papel que desempenhou no esmagamento dos protestos pela democracia.


No verão passado, após as galerias locais terem se recusado a exibir os seus quadros, Chen as colocou na Internet. Porém, em uma questão de horas as imagens foram retiradas da web.


Chen, um homem franzino de voz suave e sem emoção, afirma não estar preocupado com as consequências caso se pronuncie, ainda que tenha recebido advertências para que não mostrasse os seus quadros para ninguém. “Não estou fazendo nada de errado. Só estou falando sobre as minhas experiências”, diz ele.


Chen, que cresceu na província rural de Henan, como filho de um gerente de fábrica, deixou a escola secundária aos 15 anos por ser, segundo ele diz, um mau aluno. Ele queria ser artista, mas todos lhe diziam que essa não seria uma maneira prática de ganhar a vida. “A pressão da minha família tornou-se tão intensa que eu decidi me alistar no exército”, conta ele. Como para se alistar é necessário ter pelo menos 18 anos, ele mentiu a respeito da idade.


Menos de um ano depois, em meados de abril, Pequim estava conflagrada pelos protestos desencadeados pela morte de Hu Yaobang, o líder do Partido Comunista que foi obrigado a renunciar para assumir a responsabilidade por aquilo que alguns líderes rivais consideravam reformas econômicas e políticas descuidadas.


Isolado no seu quartel que ficava três horas ao norte da cidade, Chen contou que ele e os outros soldados pouco sabiam a respeito dos protestos. “Só sabíamos aquilo que os oficiais militares nos diziam: que indivíduos ruins estavam tentando destruir a nação e que isso estava sendo feito com a morte de mártires”, recorda o ex-soldado.


Em 19 de maio, eles receberam ordens de entrar na cidade. Mas a rota estava bloqueada por multidões de estudantes e moradores de Pequim que apoiavam os manifestantes. Durante dois dias as tropas ouviram explicações de manifestantes e foram alimentadas por eles, enquanto os líderes militares do país discutiam o que fazer.


No terceiro dia, a unidade retirou-se, mas Chen diz que o episódio o deixou confuso. “Nos disseram que aqueles eram indivíduos ruins, mas os estudantes pareciam ser honestos e francos”, conta ele.


Após passarem quase duas semanas isolados no quartel, os soldados receberam trajes civis e ordens para infiltrarem-se no Grande Salão em grupos de dois ou três. Chen conta que essa missão foi bem mais enervante. Ele disse que foi o único passageiro em um ônibus com o dobro do comprimento normal cujas cadeiras foram removidas para dar lugar a armas e munições.


Famintos e apavorados, os soldados, em sua maioria adolescentes, aguardaram no interior do Grande Salão enquanto os comandantes militares, observando a situação de uma janela de segundo andar, elaboravam a estratégia de ataque. Por volta de meia-noite, a energia elétrica da praça foi cortada e os soldados desceram as escadas em direção à rua. A fim de assustar os estudantes, fazendo com que fugissem, os homens foram instruídos a atirar para o alto. A tática teve o efeito desejado.


Por volta das 2h, dezenas de milhares de estudantes choravam e cantavam a Internacional aglomerados na praça. Pouco tempo depois, veículos blindados entraram na área. Um deles investiu contra a Deusa da Democracia, uma estátua de papel machê que estudantes de arte tinham feito alguns dias antes. “Foram necessários três golpes para que a estátua caísse”, contou Chen.


A maioria das mortes, segundo várias testemunhas do incidente, ocorreram nas ruas que levavam até a praça, e não na praça em si.


Menos de um ano após a operação repressiva, Chen inscreveu-se em uma escola militar de artes, e a seguir conseguiu ser transferido para a Academia Chinesa de Belas Artes. Em 1995, ele deixou o exército. Naqueles anos, Chen sentia-se atraído pela fotografia e pelas artes dramáticas, e criou um trabalho lúrido e provocante.


Ele passou meses filmando prostitutas e tirou fotos de si próprio fazendo sexo na Grande Muralha da China. Ele também produziu uma série de fotos de conteúdo sexual explícito de si mesmo posando com um velho intelectual que foi perseguido pelo Partido Comunista. “Eu desejava me retratar como um indivíduo que tinha uma conexão visceral com a tumultuada história da China”, disse Chen.


Embora nenhum dos seus trabalhos iniciais diga respeito diretamente à Praça da Paz Celestial, ele afirma que grande parte deles foi influenciada pelo trauma que teve lá. “Mesmo se for difícil perceber uma conexão, tudo o que faço é motivado por aquela experiência”, afirma. Chen disse que viu soldados ensanguentados devido a pedradas e um manifestante agredido por soldados com coronhadas de fuzil na cabeça.


Mas a imagem que mais o assombra é bem mundana. Quando limpava a praça naquela manhã, ele viu uma bela mecha de cabelo em forma de rabo de cavalo em meio aos restos de bicicletas esmagadas e cobertores embolados. A mecha de cabelos, amarrada com uma tira roxa, foi cortada de forma grosseira, talvez em um ato de protesto, mas possivelmente como resultado de algo mais sinistro. “Foi uma imagem chocante. Não consigo deixar de pensar naquele cabelo e no motivo pelo qual ele foi cortado”, afirmou Chen.


Nos últimos meses, ele produziu uma série de auto-retratos. Em cada um deles, o seu pescoço, ombros e peito estão cobertos de fragmentos de cabelo. Ele corta o próprio cabelo uma vez a cada um ou dois anos, e depois armazena o material no seu apartamento. Até agora ele encheu o equivalente a 24 latas de café, como matéria-prima para um futuro projeto.


Ele diz que faz os seus trabalhos mais intensos todo mês de junho, mais ou menos na mesma ocasião em que é atingido por uma terrível dor de estômago. Chen conta que trata-se da mesma dor que sentiu pela primeira vez na praça.


Foi por volta desta época no ano passado que Chen decidiu rever as fotos que tirara duas décadas antes. Pouco antes do início do ataque, o comandante de Chen deu a ele uma câmera e 20 rolos de filme e lhe ordenou que tirasse fotos à vontade. Quando voltou para entregar o filme ele escondeu três rolos no bolso.


Ele diz que as fotografias o inspiraram a falar sobre um assunto que poucos na China se importam – ou ousam – em abordar. As suas pinturas são retratos artísticos da história, insiste ele, e não expressões do certo ou do errado. As imagens são em grande parte destituídas de emoções, embora Chen as tenha produzido em um tom de azul lavado e melancólico.


“Não tenho arrependimento por aquilo que fiz”, afirma Chen. “Mas sinto que essa tragédia poderia ter sido evitada. Talvez se começarmos a falar sobre esse fato possamos impedir que ele volte a ocorrer”.
Praça da Paz Celestial, 20 anos depois: governantes modernos adotam silêncio herdado


Em janeiro, o governo chinês libertou Liu Zhihua, um dos prisioneiros condenados por “hooliganismo” nos protestos de 1989 que culminaram com o massacre da praça de Tiananmen em Pequim.


Liu tinha 24 anos quando ajudou a organizar uma greve na fábrica na qual trabalhava na cidade natal de Mao Tsetung, na província de Hunan. A greve na empresa estatal de mais de 10.000 trabalhadores era contra a supressão violenta das manifestações pela democracia.


O crime de Liu foi incitar multidões com discursos contra o governo. Ele passou 20 anos na prisão, mesmo depois da China remover o crime de “hooliganismo” da lei em 1997.


Até hoje, o governo chinês insiste que o movimento pela democracia de 1989 foi um conflito contra-revolucionário e defende a repressão aos manifestantes pacíficos em Pequim e em outras partes da China na qual centenas – provavelmente milhares – foram mortos pelo Exército da Libertação do Povo.


Para aqueles fora da elite governante chinesa talvez seja difícil entender por que o governo insiste em dizer que lidou corretamente com o incidente, apesar da morte de manifestantes desarmados e transeuntes inocentes.


Depois do incidente, por mais de uma década, a China foi governada por homens diretamente envolvidos na decisão de enviar tanques, tais como o ex-primeiro-ministro Li Peng e outros elevados aos seus cargos como resultado do conflito, inclusive o ex-presidente Jian Zemin.


Muitos de seus sucessores no poder hoje não são diretamente associados aos eventos de 20 anos atrás, mas não demonstraram a menor inclinação pela reavaliação ou reconciliação.


Um porta-voz do Ministério de Relações Exteriores reiterou recentemente a posição oficial que a repressão do movimento pavimentou o caminho para o sucesso econômico. “Os fatos provaram que o caminho socialista com características chinesas que perseguimos está no interesse fundamental de nosso povo e reflete as aspirações de toda a nação”, disse Ma Zhaoxu, em resposta à questão de um repórter estrangeiro.


“Na China, os atuais líderes não têm razão para mudar o veredicto de seus predecessores, porque sua legitimidade está em sua herança”, disse Bao Tong, a mais alta autoridade presa pelos protestos de 1989. Ele passou os últimos 20 anos em prisão domiciliar.


Bao alega ter organizado a publicação das memórias póstumas de Zhao Ziyang, ex-presidente do Partido Comunista que foi expulso por apoiar os protestos de 1989. Zhao morreu em 2005, tendo passado 16 anos sob prisão domiciliar, mas seu pedido pela reavaliação da “grande tragédia” do massacre de Tiananmen atingiu um ponto sensível.


Um grupo pequeno, mas determinado de intelectuais liberais questionou a insistência do governo que o massacre de manifestantes pacíficos e desarmados foi uma precondição necessária para o crescimento econômico rápido.


Em um subúrbio de Pequim no mês passado, houve um seminário clandestino depois divulgado na Internet no qual acadêmicos proeminentes pediram uma discussão pública e a reavaliação do massacre de Tiananmen. “Quais são os impactos negativos que trouxemos à nossa sociedade por causa de nosso silêncio nos últimos 20 anos?”, indagou Cui Weiping, professor da Academia de Cinema de Pequim.

“Qual dano esse silêncio fez ao nosso espírito nacional e moral?”



As notícias do seminário na Internet foram rapidamente bloqueadas pelos censores.


Hoje, 20 anos depois, a imagem de um homem diante de um tanque na avenida da Paz Eterna mal é reconhecida na China e conversas sobre mudar o veredicto oficial são restritas a reuniões secretas de acadêmicos liberais. Os líderes do Partido Comunista temem que uma discussão levante questões sobre sua legitimidade.


As manifestações em 1989 se concentraram em pedidos por liberdade política e pelo fim da corrupção oficial, duas questões com as quais o partido tem dificuldade de lidar até hoje.


“Os supressores de 4 de junho tinham armas pesadas, mas não tinham noção da história”, disse Xu Youyu, professor de filosofia da Academia Chinesa de Ciências Sociais, àqueles reunidos no mês passado. “Massacrar civis é rir da justiça e com esse ato os líderes perderam toda legitimidade.”

Trinta presos



Estima-se que cerca de 30 pessoas ainda estejam presas por ofensas cometidas nos protestos na China em 1989. Dos libertados, ao menos oito e provavelmente mais foram presos novamente, em geral acusados de ativismo político ou de defender direitos humanos. Os condenados por sabotagem contra-revolucionária, “hooliganismo” e incêndios propositais foram condenados à morte ou à prisão perpétua.

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.